Leitura de Onda

“You know”

Tulio Brandão avalia as entrelinhas da vitória incontestável de Filipe Toledo no Pro Sunset e traz perspectivas do CT após a perna havaiana.

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Maturidade competitiva de Filipe Toledo parece ampliada após título mundial.

O divertido vício de linguagem de Filipe Toledo, que dá título a este texto, é também um jeito contundente de reafirmar, em frase curta, o talento do vencedor da etapa de Sunset, que terminou no domingo de carnaval com folia brasileira.

Ele sabe. Nós sabemos. Os rivais sabem. Até os juízes mais resistentes sabem. Filipe tem hoje o mais bem desenhado arco do tour. Reafirmou seus atributos no dia decisivo da segunda etapa do ano, em ondas menores que as esperadas na potente arena, mas suficientes para excelentes embates desde as quartas de final.

Na final, superou um cada vez mais perigoso Griffin Colapinto, em disputa com boas alternâncias e a ratificação de outro importante atributo do brasileiro: a maturidade competitiva, que parece ampliada depois de seu primeiro título mundial.

O surfista de Ubatuba tem se mostrado inabalável diante de adversários que abrem baterias com notas na casa do excelente. Tranquilo e infalível como Bruce Lee, como diria Caetano. Nada abala o surfista de Ubatuba.

Filipe tem o arco mais bem desenhado do Tour.

Griffin chegou à final com os mais desprendidos ataques às zonas críticas da onda. Foi ao limite em muitas ocasiões – como nas oitavas, contra Gabriel Medina, no ataque à melhor onda da disputa, ou mesmo na onda que abriu a final.

Robinson, que chegará em Portugal com lycra amarela depois do terceiro posto em Sunset, segue com a sua já costumeira leitura assombrosa de tubos. Em Sunset, catou canudos onde comuns só encontravam uma parede deitada e gorda.

Ambos os surfistas, no entanto, estiveram – e estão – abaixo de Filipe no principal atributo pedido pelas condições de Sunset no dia decisivo: o surfe de borda, com arcos completos, de borda encravada, no pocket da onda.

O seeding de campeão ajudou Filipe a escapar das ultimamente perigosas armadilhas dos round 32 e 16, com vitórias esperadas sobre Eli Hanneman e Seth Moniz.

Nas quartas, no entanto, o atual campeão do mundo deu de cara com um (desde já) gigante da perna havaiana. Caio Ibelli vinha inacreditavelmente forte no evento, mas a perda de pulso no swell reduziu suas possibilidades de vitória.

Toledo conta com apoio da família em Sunset.

Naquelas condições, não é demérito dizer que Filipe é melhor, mais agudo e, ao mesmo tempo, mais preciso. Mais que isso, talvez ele seja o melhor. Ponto.

Ainda assim, Caio se consolida definitivamente como um nome obrigatório na lista de favoritos das etapas do arquipélago. Se houvesse um ranking dos resultados das provas de Oahu em 2022 e 2023, o surfista certamente sairia líder: em quatro provas, alcançou o terceiro posto três vezes e uma vez o quinto lugar. Agora, é cuidar para mudar a lógica do ano passado e manter a intensidade também no resto da temporada. Não lhe faltam ferramentas.

Filipe avançou para a semifinal com uma provável consciência de que era, naquele dia decisivo, o melhor surfista do evento. E isso bastou para encontrar João Chianca, outro gigante já consagrado da perna havaiana. O filho de Saquarema tinha assombrado o mundo nos rounds 32 e 16, quando encaixou sua eletricidade à potência do swell, mas não resistiu, ele também, à perda de pulso e, claro, ao refinamento do campeão.

João perdeu, mas deixa o arquipélago como terceiro do mundo, livre do fantasma do corte do meio do ano, reconhecido também como protagonista das duas etapas e, ainda, com a explosão de confiança que talvez tenha lhe faltado ano passado.

Perda de pulso no swell reduziu as possibilidades de vitória de Caio Ibelli.

Elétrico e feliz, João segue para uma temporada com muitas ondas possivelmente afeitas a seu surfe, como Supertubos, Bells, Margaret River, Barrinha, J-Bay e Teahupoo. Livre da luta pela degola, como ocorreu em 2022, o saquaremense pode, este ano, surpreendentemente, começar a sonhar com a vaga no Finals.

O outro semifinalista da etapa, Robinson, é antes de qualquer outra análise um surfista pronto para a briga pelo título mundial. Está concentrado, em excelente forma física e técnica, é dono de uma fúria competitiva incomum e se apresenta como um surfista com recursos abrangentes em quase todas as ondas. Não é líder de 2023 por acaso.

Dito isso, Robinson não esteve entre os melhores de Sunset. Mais que isso, começa a emergir das notas dadas ao australiano uma desavergonhada vontade da WSL de vê-lo campeão mundial. Isso não é ruim apenas para os adversários – é, também, um tiro no pé do surfe. Afinal, é no ajuste fino do bom julgamento que a técnica sai do lugar.

Ao sobrevalorizar ondas, o juiz não apenas confunde espectadores como atrapalha surfistas. A nota 8 de Robinson nas oitavas contra Leo Fioravanti é só mais um exemplo de desserviço ao esporte. Uma passada, um tubo nada profundo e um cutback não poderiam gerar uma nota na casa do excelente naquelas condições de mar.

João Chianca começa a sonhar com vaga no WSL Finals em 2023.

De volta a Filipe, além de toda a exuberância técnica e a maturidade profissional, o campeão levou ao arquipélago a mais perigosa das armas de um competidor: o amor da família. Sereno e equilibrado, turbinado pelo carinho da mulher e dos filhos, o surfista de Ubatuba está mais encaixado que nunca para mais um título mundial. A temporada mal começou, mas Trestles é logo ali.

Alguns nomes precisam ser lembrados a despeito de ficarem fora das finais.

Yago Dora é digno de nota – pela excelente forma técnica, mas também pelas derrotas precoces na ilha. Em Sunset, parou apenas para um inspiradíssimo Chianca, mas mostrou ao mundo mais uma vez seu excelente pacote técnico de costas para a onda. Apesar da ótima forma, somou apenas um nono e um décimo sétimo lugares nas duas primeiras etapas do ano. No CT, como sempre disse Adriano de Souza, só é preciso ser melhor que seu adversário durante os 30 minutos de bateria.

Não dá para terminar sem falar de Gabriel Medina, John John Florence e Italo Ferreira, que somam seis títulos mundiais. Eles saem do arquipélago em que costumam brilhar fora da lista dos 5 melhores do ano. Seria possível tratar as derrotas apenas com a desculpa da falta de oportunidades em ondas instáveis, mas não.

O amadurecimento de muitos surfistas antes irregulares e o surgimento de novos protagonistas na briga pelo top 5 têm sido obstáculos importantes para esses surfistas. Eles vão precisar de uma vontade de vencer bastante ampliada, concentração em novos níveis e muita técnica para furar este inesperado bloqueio dos rounds anteriores ao dia final. Gabriel e Florence têm feito apresentações magníficas antes das derrotas; já Italo até agora não reencontrou o brilho.

A história, claro, nos mostra que os três gigantes reagirão em algum momento. Mas a história também nos mostra que, no surfe, a fila anda com muita facilidade. A ver.

Que venha Portugal, para nos dizer se os cetros estão realmente mudando de mãos ou se os celebrados campeões do passado ainda podem reinar no mundo.

Gabriel Medina sai do arquipélago havaiano fora dos Top 5.