Leitura de Onda

O melhor perdeu

Diante da complexidade do surfe da elite, Tulio Brandão defende a importância do julgamento focado na excelência técnica do esporte, como elemento sagrado e inegociável.

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Australiano Jack Robinson vence segundo evento seguido no circuito mundial.

Jack Robinson é um ótimo integrante da elite, dono de uma técnica superior em ondas tubulares. Tem um grande treinador, Leandro Dora, que notadamente lhe deu um novo cérebro competitivo. Desde a chegada do técnico, já são três vitórias. Parece ser, ainda, um cara gente boa, um desses cada vez mais raros surfistas de alma.

Dito isso, Robbo, como o bom Jack é conhecido, venceu G-Land sem ser o melhor. Não é a primeira vez que ele ganha uma avaliação condescendente em condições de mar em que não é dominante e, pelo visto, não será a última. O julgamento impreciso já tinha ficado claro para muita gente no México e, em certa medida, em Margaret River.

Não seria difícil analisar analogicamente as notas – não somente, mas sobretudo nas comparações entre Jack e seus dois adversários na semifinal e na final, respectivamente Gabriel Medina e Filipe Toledo.

Eu poderia, por exemplo, falar do 8,5 do australiano nas quartas de final, com um tubo relativamente profundo, mas muito rápido e sem risco, e um conjunto de alisadas na face mais gentil da parede, que igualou uma assustadora demonstração de habilidade, variedade de repertório, radicalidade e precisão demonstrada minutos antes por Medina, em onda que rendeu a mesma nota, ainda que em baterias distintas.

Filipe Toledo recebe segunda colocação em G-Land.

Ou, ainda, falar do 7,8 de Jack na última onda da semifinal, com uma manobra forte mas com retorno agarrado e nada além de pequeno tubo na sequência, em comparação com o 7 de Medina. E também discutir a primeira nota do australiano, um 6,07, com manobras comuns, na mesma bateria, espelhada com o 6,33 do brasileiro.

Mas, honestamente, não se trata disso. Até porque, de um certo olhar, o espectador pode até achar que Robinson fez o que precisava para virar, ao surfar de modo correto e demonstrar vontade de correr risco nas últimas ondas das finais. E que, mesmo sem ser o melhor surfista do evento, como suas médias sugerem, ele teria vencido.

Ocorre que a análise onda-a-onda oculta a condescendência recorrente com certas lacunas técnicas importantes apresentadas por alguns surfistas da elite – entre os quais, claro, Robinson, mas não só ele. Sejamos justos: há brasileiros nessa lista.

Esta talvez seja a origem do erro de julgamento em G-Land.

No caso de Robinson, de minha perspectiva, ele é mais um a usar excessivamente o fundo da prancha, em detrimento da borda. Em batidas de costas para a onda, isso fica bem claro. E, quando ele chuta a rabeta, acaba apenas desgarrando as quilhas, sem uso de borda, como aconteceu na onda da primeira nota da final.

Gabriel Medina eleva complexidade técnica a outro nível durante o Pro G-Land 2022.

Outra lacuna está num conjunto formado por velocidade, intensidade e potência das manobras. A abordagem de Jack é correta, mas muitas vezes pouco intensa, sem pulso. E, estranhamente, isso parece não ser levado em conta na avaliação.

Quando seu surfe ganha força, algumas vezes vem também acompanhado de ligeiras imprecisões, como na primeira manobra forte da última onda da semifinal, em que ficou preso ao lip por alguns instantes, antes de voltar atrasado.

Sem considerar detalhes preciosos ao esporte, a WSL segue distorcendo sem qualquer pudor seu conjunto de critérios “speed, power and flow”. Já passou da hora de a entidade detalhar mais as exigências para um surfe bem pontuado na elite.

De volta ao evento, quem gosta mesmo do esporte, não importa o país, viu uma diferença abissal de Gabriel Medina para os demais competidores da prova. Se por acaso você não conseguiu varar a noite para assistir ao vivo ou não teve interesse em voltar ao replay, pare um instante para checar o tricampeão nas quartas de final.

Connor O’Leary desenha boas linhas e chega à semifinal do evento.

Em duas ondas, Gabriel fez uma exibição rara, concentrando um variado repertório de manobras de impacto, precisas e potentes, com a borda encravada na água. As transições também foram exemplares, praticamente sem movimentos desnecessários entre manobras. Todos que gostam de surfe ficaram impressionados – comentaristas, surfistas, críticos, brasileiros, estrangeiros.

Os juízes, nem tanto. Gabriel sequer alcançou a maior nota do evento – que ficou com o cada vez melhor Griffin Colapinto, em outra fase. A WSL perdeu, ali, excelente oportunidade de fazer um “statement” em defesa daquela demonstração plena de complexidade técnica do surfe da elite. As duas ondas deveriam ter sido julgadas acima dos 9 pontos pela perfeição com a qual foram surfadas. Mas não.

Assim, pouco depois, sem qualquer defesa do valor de seu surfe, mesmo mais agudo e incisivo, Gabriel perdeu de Jack e complicou bastante seu sonho de estar entre os cinco melhores do mundo em Trestles.

É preciso ir mais longe – o “statement” deveria se estender a algumas apresentações de Filipe, que, como o campeão Jack, também surfou de costas para a onda, mas com mais precisão, velocidade, potência e, sobretudo, borda.

Yago Dora retorna depois de um longo período de recuperação física.

Da mesma maneira, sem que os juízes enxergassem diferença técnica entre os dois surfistas, Filipe perdeu para Jack. Mas, diferentemente de Gabriel, segue em excelente posição: manteve a liderança de 2022 e tem presença praticamente certa na onda caseira, em San Clemente, para o WSL Finals.

A entidade precisa se livrar definitivamente das bandeiras, de velhos vícios, das diferenças culturais. O único elemento realmente sagrado, a ser tratado como um valor intocável, não negociável, deveria ser a excelência técnica do esporte.

É hora de recobrar a defesa do melhor surfe. A vice-liderança de Robinson na temporada revela, sim, uma notada evolução do surfista, mas não representa de modo algum o que vem acontecendo realmente dentro d’água em 2022.

Por falta de sorte, G-Land não exibe suas tão sonhadas ondas durante a janela da competição.

Deem mais uma chance a G-Land 

Num evento entre swells, a onda de G-Land decepcionou quem alimentava o sonho de ver os melhores do mundo em expressos perfeitos. A falta de sorte tem acontecido com frequência na temporada. À exceção de Pipeline, com ondas extraordinárias, as janelas dos eventos têm estado abertas quase sempre em dias medíocres. Oxalá a situação mude em El Salvador e na sequência.

Antes do fim, queria falar de surfistas de base goofy, tão distintos entre si, que voltaram a um lugar de destaque, olhando de frente para a onda.

É um prazer, para quem gosta de boas linhas, ver um bom resultado de Connor O’Leary. Muitos amigos implicam, dizem que é um surfista sem contundência, mas admiro bastante os desenhos deste surfista na onda. Lá estava ele, na semifinal de um evento inédito, com 24 dos melhores do mundo, nas esquerdas manobráveis deste fraco G-Land.

Jadson André fica com a quinta posição e briga admiravelmente por seu espaço.

Mais contundente, mais surfista e dono de linhas ainda mais bonitas, Yago Dora voltou ao circo, depois de um longo período de recuperação física. O resultado não saiu – ele caiu cedo, em disputa duríssima com Filipe Toledo – mas vê-lo dentro d’água foi suficiente para saber que está de volta, a caminho da melhor forma, e pronto para assumir um protagonismo inédito no time brasileiro da elite.

Por último, mas não menos emocionante, é sempre um prazer ver Jadson André buscar resultados. O quinto lugar em G-Land é mais uma lição do surfista que briga por seu espaço admiravelmente e que, de agora até o fim do ano, vai surfar de modo inédito na elite, sem medo da eterna degola que tanto o ameaçou na carreira.

Que soe a sirene em La Libertad, El Salvador.