Leitura de Onda

Um 77 com cara de 22

Tulio Brandão disseca etapa de Bells Beach, vencida por Filipe Toledo, e traz à tona todos os detalhes que realmente importam.

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Filipe Toledo balança o tão sonhado sino do Pro Bells Beach 2022 na Austrália.

A vitória de Bells e a liderança da temporada de 2022 estão em boas mãos. A frase pode parecer óbvia, mas, como visto na própria etapa, nem tudo o que acontece é tão óbvio. O fato é que Filipe Toledo reúne, hoje, dentro e fora d’água, atributos capazes de fazer as velhas lacunas do surfista serem deixadas um pouco de lado.

O mais importante deles é o momento da carreira. Nos últimos três eventos, demonstrou estar em excelente fase técnica e maduro para vencer. Em Bells, apesar de ficar em segundo na fase 1, passeou pelas mais variadas condições de onda sem perder consistência. Dá evidentes sinais de que está perto de ser campeão do mundo, desta vez, sem que ter fazer um milagre para alcançar o feito.

Mais ou menos como ele fez em Bells, onde venceu se impondo com muita qualidade, mas sem a necessidade das performances arrasadoras do passado.

Impôs-se desde o round 3 quase sempre com médias próximas ou na casa do excelente, como nas baterias contra os australianos Mikey Wright e Connor O’Leary e contra o melhor surfista do evento, o havaiano John John Florence.

Vencer Florence nas quartas, com direito a uma nota quase perfeita, foi uma benção para Filipe. Em 35 minutos, ele interrompeu a escalada aparentemente inevitável do havaiano rumo à sua segunda vitória consecutiva na direita de Victoria, deu o troco desta final de 2019, afirmou-se como líder incontestável da temporada até agora e, não menos importante, levou vantagem sobre o rival num mar que, em certo sentido, poderia lembrar um dia ordinário em Trestles, que será palco da disputa provável entre os dois surfistas pelo título da temporada de 2022.

Filipe tem, ainda, a seu favor, a simpatia do mundo. É um cara comunicativo, com inglês fluente, que se aproximou da cultura de surfe dos donos da bola ao fixar residência em San Clemente, na Califórnia. Realizou-se como pai e parece lidar bem com os desafios típicos das relações familiares. Nas derrotas mais duras, costuma manter a serenidade em público, mesmo quando as coisas parecem injustas.

Neste sentido, no sentido da boa imagem construída fora d’água, que, por mais que não queiramos, é uma variável que por vezes vaza para o julgamento, Filipe é o brasileiro que mais se aproxima de Florence. Aqui, friso o “se aproxima”, porque ninguém jamais será tão bem avaliado antes de entrar na água quanto o havaiano.

Filipe Toledo crava a borda em Bells Beach.

Na final, um sino sem swell

No dia da decisão, o swell murchou definitivamente, restando aos surfistas encontrar um pedaço menor e mais murcho de Bells.

Na semifinal, Filipe avançou sem dramas pelo bom Ethan Ewing, surfista que dá as caras sempre que aparece uma onda afeita a linhas finas. Na bateria, prevaleceu sobretudo a ausência de ondas. Ewing ainda teve uma oportunidade, mas seria surpreendente demais fazer nota acima de 7 naquele mar.

A finalíssima foi disputada com a surpresa Callum Robson. Cal, como é conhecido o australiano, vem da pequena Evans Head, com seus pouco menos de 3 mil habitantes, na região de New South Wales, e é o primeiro daquelas bandas a chegar ao CT. Passou boa parte da adolescência jogando competitivamente “footy”, esporte australiano semelhante ao rúgbi, e só começou a competir mais a sério no surfe aos 16 anos. Sua primeira final, portanto, não é surpresa apenas para os brasileiros.

Apesar de dois honestos nonos lugares, em Pipeline e em Portugal, as performances até Bells não tinham chamado mais atenção que o bico branco de sua prancha, ou seja, a ausência de um patrocínio principal. Mas, nas ladeiras pouco inclinadas de Victoria, a boa linha de seu surfe encontrou lugar seguro.

Com arcos limpos e velocidade, na cartilha da boa escola australiana, parou o velho mestre de Bells, Mick Fanning, além de outros bons surfistas daquela onda, como Frederico Morais, no round 3, e Jack Robinson, na semi. Nas quartas, surfou uma bateria controversa com o brasileiro Miguel Pupo, que comento adiante.

Em vitórias ou derrotas, Cal, o estreante mais jovem da temporada, aos 20 anos, adiciona uma pitada interessante de linha clássica ao acelerado universo da nova geração do tour. Mas a sexta posição no ranking definitivamente não reflete o surfe que o australiano apresentou até aqui. João Chianca, por exemplo, tem sido um estreante mais inspirador, mesmo para o australiano mais fanático.

João Chianca tem sido um estreante inspirador.

Chianca x Seeding

Não é exagero: Chianca e Florence protagonizaram as duas melhores baterias da temporada, em Pipeline e Bells. Nas duas ocasiões, o mundo do surfe voltou a ver centelhas de um esporte que, quando produzido em seu limite competitivo, revela momentos extraordinários. Já vimos muito isso acontecer em anos passados.

Chianca perdeu as duas, pelo menos no papel. Uma delas, a de Pipe, foi mais controversa; a outra, num excelente momento da onda de Bells, mais justa. Em ambas, o único surfista de Saquarema na elite assombrou o mundo do surfe e o próprio havaiano bicampeão mundial, mas nada disso adianta para o corte do meio do ano.

A situação do brasileiro, em 25º lugar, a três postos da linha mínima de classificação, faltando uma etapa para a redução do número de atletas no CT, é dramática. O desafio não é impossível, sobretudo se considerarmos a onda de Margaret River e o surfe de Chianca, mas poderia ser menos difícil se a WSL não tivesse reduzido tão drasticamente as possibilidades dos estreantes em 2022.

Aqui, explico: já é missão árdua para qualquer rookie combinar o julgamento subjetivo, que naturalmente tende a favorecer o surfe mais conhecido, com os desafios impostos pelo sistema de seeding, que obriga o confronto de estreantes, sempre mal ranqueados, com os melhores do mundo, em cruzamentos precoces.

Em anos anteriores, a entidade tinha encontrado uma fórmula mágica ao permitir uma janela de fuga ao mal ranqueado mais talentoso: vencer o primeiro round, não eliminatório, e, assim, ganhar de brinde o reposicionamento de chave nas fases seguintes, evitando com isso o confronto imediato com os melhores do mundo.

Em 2022, a WSL não apenas acabou com a regra que permitia o reposicionamento como instituiu um abrupto corte no meio do ano, que torna a temporada obviamente curta demais para a recuperação de um surfista novato massacrado pelos tops.

John John Florence, o adversário mais duro em Bells Beach.

Em outras palavras, julgamento subjetivo + seeding + fim do reposicionamento pós-fase 1 + corte no meio do ano = estreantes em apuros. O sujeito pode dar sorte, como tem acontecido com Cal, em chaves mais tranquilas, mas a regra não é essa.

Assim, João tem encontrado Florence e produzido grandes momentos, gerados pela incrível gana de um surfista que se recusa a perder de véspera. Mesmo com o esforço dele, mesmo com a incrível performance, o brasileiro está ameaçado. Mas faço fé na capacidade de ele construir um excelente resultado na selvageria de Margaret River. Aquele lugar parece se encaixar ao espírito de Chianca.

Durante a semana de Bells, foi realizada uma reunião com atletas insatisfeitos com o corte do meio do ano, mas a entidade parece ter fincado o pé na manutenção da regra que reduz o número de surfistas depois de cinco provas. Circula a informação de que, no início do ano, ambas as decisões – o corte e o fim do reposicionamento – foram tomadas com o consentimento de alguns surfistas. Os demais atletas, entre estreantes e convidados, teriam sido convocados a assinar um termo de consentimento no beach marshall da etapa de Pipeline, no momento de retirar a lycra para a bateria. Cabe à WSL confirmar como as decisões foram tomadas.

“You can’t script this?”

Antes de escrever sobre julgamentos polêmicos, faço uma observação: escrevo, hoje e sempre, do ponto de vista do brasileiro, e não tenho qualquer vergonha dessa perspectiva, já que não faltam análises do ponto de vista anglo-saxão, inclusive vindas aqui de dentro, de Pindorama.

Se busco a neutralidade? Claro. Busco ainda ser justo, equilibrado e transparente, com a ressalva de que a neutralidade é como uma cenoura na frente do burro: você deve passar a vida tentando alcançá-la para poder sair do lugar, ainda que não consiga.

Dito isso, vamos à polêmica: as duas últimas baterias de quartas de final foram risivelmente julgadas. De minha perspectiva, o erro mais escandaloso se deu na bateria menos comentada, entre Miguel Pupo e Cal Robson.

Miguel Pupo ataca verticalmente as ondas de Bells.

Nas duas ondas da soma, Pupo atacou de modo agudo, sem abrir mão de sua conhecida linha. Cal surfou a melhor nota da bateria, mas, em sua segunda onda da soma, foi premiado por passear com a prancha sem qualquer traço de potência ou radicalidade, numa onda intermediária. Se um bom trilho, isoladamente, vencesse bateria, a vida do esteta sul-africano Mike February teria sido bem mais fácil na elite.

O curioso foi ver os dois juízes brasileiros que estavam no painel dando a vitória para Pupo – note que, em baterias controversas, isso não acontece com frequência.

Na outra bateria, entre Italo Ferreira e Jack Robinson, o erro se deu na primeira onda da média, surfada no meio da bateria. A diferença de um décimo entre as ondas destruiu a escala de notas da bateria, uma vez que a onda de Italo foi bastante superior à de Robinson. No fim, na última troca de notas, deram a vitória ao local.

Não acredito em crime premeditado nesse esporte. Nem em perseguição a nacionalidades. O que sustento, sim, é que o painel de juízes pode ter se deixado contaminar pela expectativa local de ter um surfista da Austrália na final da etapa. E isso parece ter afetado de modo grosseiro o julgamento. Erraram na mão.

Não foi a primeira vez. Não será a última vez. Mas lembrem-se: o Brasil também terá a sua prova, onde pode acontecer o mesmo. Temos ainda o vencedor da prova, o líder do ranking e outros três brasileiros entre os 10 melhores surfistas do mundo.

A se lamentar, apenas o fajuto slogan da entidade: “You can’t script this” é o cacete.

Italo Ferreira eliminado em bateria polêmica.

Margaret dá uma piscadela a Filipe

Agora é hora da página mais selvagem da temporada, Margaret River. Filipe, que venceu ano passado no modo brilhante, em final com o sul-africano Jordy Smith. Foi um ano sem o desafio de “The Box”, mas, se eu fosse o líder, este ano, torceria por uma boa condição no famoso slab australiano.

Seria uma excelente oportunidade para o talento de Ubatuba enfim mostrar que pode vencer também em ondas potentes, com concavidade acentuada. Se fizer isso, aposto que Filipe fica irremediavelmente perto do legítimo sonho do primeiro título mundial.