Evandro Bonservizi

Shaper raiz

Confira entrevista exclusiva com Evandro Bonservizi, que se dedica à arte de shapear há mais de 30 anos.

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Evandro Bonservizi checa um shape na Pro Ilha.Arquivo pessoal.
Evandro Bonservizi checa um shape na Pro Ilha.

Entrevistamos o renomado shaper da Pro Ilha, Evandro Bonservizi, 42 anos, profissional que conta com uma jornada de 30 anos no mundo das pranchas de surfe, marcada por experiências singulares e evolução constante. Essa é a história de alguém cuja ligação com o surfe foi selada ao ganhar uma prancha do irmão durante um período de férias na paradisíaca Bertioga (SP). Inspirado pelas páginas das revistas de surfe, em especial o saudoso Guia de Pranchas encartado na extinta revista Fluir, nosso entrevistado mergulhou de cabeça na arte de shapear.

Seu primeiro contato com a construção de pranchas envolveu materiais improvisados, como ralador de queijo e templates feitos à mão com cartolina, entre outros materiais improvisados. Sua trajetória tomou um rumo decisivo quando, após esse período inicial de trabalho, teve a oportunidade de estagiar na lendária fábrica Da Hui.

Em 1998, o destino o trouxe definitivamente para o sul do Brasil, mais precisamente para Piçarras (SC), onde estabeleceu sua pequena fábrica e, em 2000, deu um passo significativo ao se unir à equipe da Pro Ilha. Nesta entrevista, exploramos os elementos fundamentais que moldaram sua jornada, desde suas preferências quanto à configuração de quilhas, até a sua visão sobre a influência das piscinas de ondas artificiais no design futuro das pranchas.

Evandro na época em que shapeava para a Da HuiArquivo pessoal.
Evandro na época em que shapeava para a Da Hui

Ao longo das perguntas, desvendamos sua inspiração, seus modelos de sucesso e a importância crucial do feedback da equipe no refinamento constante de seus designs. Acompanhe esta entrevista exclusiva para conhecer mais sobre a trajetória e os insights de um shaper raiz que segue evoluindo, pesquisando e produzindo.

Como começou a shapear? Houve algum momento ou pessoa que foi decisiva para você começar?
Na verdade, eu sempre ia passar férias em Bertioga, litoral norte de São Paulo. Meu pai já comprava revistas de surfe e aquilo ali me bateu aquele amor pelo esporte. Nessa época meu irmão me deu uma prancha. E através dos antigos guias da Fluir, tive minha primeira inspiração. Aí eu fui lá e comprei material pra fazer prancha, fiz com ralador de queijo, fiz os primeiros templates com cartolina. Fui fazendo no olho. Eu era de São Bernardo, interior de SP, e achei um anuncio da antiga fábrica da Da Hui. Aí eu pedi a eles para fazer um estágio. Comecei fazendo consertos e fui aprendendo todos os processos da prancha. Eu faço desde a quilha até o shape. Vim para o sul em 1992 para surfar e conhecer. Depois, em 1998 migrei em definitivo. Aí montei minha fabriquinha onde fazia a prancha toda e mandava as pranchas para a Da Hui. Chegou um tempo em que eles precisavam ter uma fábrica grande. Ai, em 2000, 2001, a Pro Ilha começou a fazer a pranchas Da Hui. Eles já tinham uma equipe eu entrei como shaper. Os donos gostaram do meu trabalho e acabou que eu me tornei shaper da Pro Ilha e desde 2001 estou na família.

O shaper havaiano John Carper em visita à fábrica da Pro Ilha em 2011.Arquivo Pro Ilha.
O shaper havaiano John Carper em visita à fábrica da Pro Ilha em 2011.

Como você vê a evolução do seu trabalho ao longo dos anos?
A principal evolução foi a máquina computadorizada. Eu comecei com o ralador, passei pela plaina e hoje temos a grande ferramenta que é a máquina. Isso foi um salto grande. A evolução da tecnologia permitiu que a gente aumentasse a produção. Atualmente podemos replicar uma prancha com bastante fidelidade, mesmo que ela não funcione exatamente como a sua matriz. Na época da plaina a gente não conseguia com tanta perfeição. Com máquina temos o mesmo arquivo e ela aplica as medidas com precisão. Outro ponto importante foi o intercâmbio que tive com outros shapers fora do Brasil, e nesse quesito destaco o shaper havaiano Wade Tokoro (faz a pranchas do Gabriel Medina para o Havaí), com quem já trabalhei e aprendi muito.

Além do Tokoro, quais shapers inspiram seu trabalho e com quais marcas você já trabalhou?
Começando com o primeiro, meu professor e mestre Victor Banys. Ele foi o cara que mais me inspirou, sempre muito crítico e perfeccionista. Banys é um sujeito muito criterioso e competente que faz altas pranchas. Uma outra inspiração foi o Ricardo Martins, que considero como referência máxima. Outro é o Joca Secco que também faz altos foguetes. E depois Al Merrick. Esses foram os principais. O Wade Tokoro, que é um amigo meu, também influenciou e influencia bastante meu trabalho. Eu trabalhei com ele. Mas antes, em 2007, a Pro Ilha junto com a Silver Bay fechou uma parceria e trouxeram ele para o Brasil para começar a distribuir suas pranchas. Eu o conheci e ele me chamou para finalizar as pranchas dele aqui no Brasil. Inclusive nessa ocasião o John Cabianca estava com ele. O Cabianca era o cara que desenhava as pranchas do Tokoro no Havaí pois tinha mais intimidade com a máquina utilizada por ele. Fui para o Havaí fiquei um tempo lá estreitamos bastante nossa amizade. Voltando do Havaí, o Pedro Bataglin passou a Rusty para a Pro Ilha e acabou que também fiquei responsável pelas pranchas dele aqui. Em 2015 o Chilly veio ao Brasil, e em 2019 comecei a finalizar as pranchas dele.

Wade Tokoro e Bonservizi, intercâmbio de shapers.Arquivo pessoal.
Wade Tokoro e Bonservizi, intercâmbio de shapers.

Qual configuração de quilhas você prefere para seu uso atualmente: single, tri, quad, ou twin e por quê?
Eu só estou usando praticamente biquilha, que é uma prancha divertida e fácil de surfar. O cara vai ganhando uma idade, muitas atividades na vida, e às vezes não consegue manter o rip, mas quer entrar na água e se divertir. Eu represento mais a galera que surfa nos finais de semana e precisa de uma ferramenta para compensarem a falta de rip.

Como você vê a evolução das biquilhas hi-performance?
As biquilhas alta performance estão saindo muito. Todo mundo quer ter uma prancha com boa remada porque o cara chega no pico e tem aquela molecada, com muita remada e fome de ondas. E se você não chegar preparado, não vai pegar onda. A maioria dos clientes – principalmente os que surfam só nos finais de semana –  reclamam da mesma coisa: tem muita gente na água não consigo acompanhar a molecada. Com essas pranchas que tem mais volume e são mais larguinhas, é bem mais fácil de você entrar na onda. Outro tipo de pranchas que tem sido uma ótima opção são as midlength, cada vez mais refinadas. Elas são pranchas que têm em média de 7 a 8 pés, com um bico nem tão estreito quando os das pranchinhas, nem tão largo como os dos funboards. Esse tipo de prancha é bastante indicado para aquele cara que sabe pisar, mas está acima do peso e fora do rip. Tenho visto muitos competidores usando no freesurf. Essas pranchinhas, com os elementos certos, estão cada vez mais lapidadas o que as torna cada vez mais alta performance. Hoje alguns atletas pedem quadriquilhas por exemplo. Elas funcionam muito bem em algumas situações nas quais mostram que têm mais drive e mais projeção: são muito boas em ondas tubulares por exemplo. Esse é uma estilo de configuração de quilha que foi criado lá atrás com o Ricardo Bocão, contudo os créditos ficaram para o Kelly Slater. As linhas alternativas, que são pranchas mais largas, mais bolachinhas, são muito procuradas.

Na sua opinião, quais são as principais diferenças no desempenho entre pranchas de epóxi e PU (poliuretano) e em quais condições você recomendaria cada uma?
A procura pelo epóxi hoje em dia tem sido muito alta, tendo um crescente exorbitante. Minha produção atual é cerca de meio a meio em termos de epóxi e pu. Talvez seja até seja um pouco mais de epóxi, que eu adoro, principalmente nas pranchas pequenas por conta de sua flexibilidade e resistência. Mas não podemos esquecer o pu. Quando o cara quer surfar em todas as condições o pu é mais indicado, principalmente se ele vai pegar uma onda forte, como Indonésia, Hawaii, Taiti, Maldivas, Peru. Hoje a gente tem a full carbon, outra ótima opção. Ela não é não é tão flexível como epóxi e chega mais próxima do pu em termos densidade e resistência. Esse tipo de prancha te permite ter uma resposta rápida sem perder o drive e ainda é muito resistente.

Como você se inspira para criar novos modelos? Existe algum processo criativo ou rotina que você segue para inovar em seus designs?
Eu tenho uma base de modelos que já funcionam. Alguns atletas se adaptaram bem a esses modelos, mas têm necessidades especificas. O processo consiste em pegar a prancha do atleta, aprimorar, estudar, e nesse contexto nasce um modelo novo. Esse arquivo vai para teste, a gente aprova ou não, e caso passe no teste de qualidade, batizamos e vai para a produção.

Quais são os principais fatores que você considera ao personalizar uma prancha para um cliente específico?
Primeiramente peso, altura e tamanho do pé, que é essencial pra podermos ter uma noção de área de rabeta. O grau de experiencia também é muito importante. Se já sabia surfar e estava parado. E depois vem detalhes como qual o tipo de onda que ele vai surfar. Temos muitas variáveis para atuar. A gente acaba fazendo uma entrevista com o cliente. O restante são segredinhos.

Quais seus modelos que mais fazem sucesso?

Modelos performance:

The Wolf/ Performance: modelo desenvolvido em parceria com Santigo Muniz ( competidor do QS e irmão de Alejo Muniz), que é uma prancha de alta performance.

Weapon: modelo que foi desenvolvido comigo e Alex Lima, que foi o cara principal nesse processo. Essa é alta performance e atualmente quem vem usando é nosso atleta Adriano de Souza ( campeão mundial de 2015).

Float: uma prancha com alta performance, mas é indicada tanto para surfistas medianos quanto para os avançados. Têm muitos competidores da nossa equipe que a utilizam. Ela lembra muito as pranchas que o Ítalo Ferreira usa, são largas e com performance.

Modelos das linhas alternativas/fishs:

Black Eye: prancha que sai muito e tem uma boa aceitação para quem surfa nos finais de semana e para quem está no rip. Serve para todo tipo de surfistas. É uma prancha bem bolachudinha, triquilha, bem bojuda. Os coroas que surfam bem adoram essas pranchas.

Monstra: modelo de biquilha, estilo a biquilha do Rob Machado. Essa prancha é bem versátil. Indico para quem busca diversão e quer pegar muitas ondas.

Extra Large XXL: essa é uma das que mais sai. Ela é um mix das pranchas dos anos 1980, bem distribuída com a ponta da rabeta não tão larga, com o bico um pouco mais largo. É uma prancha que desenvolvi para caras maiores e pesados. Esse modelo é ideal para quem está fora do rip, ou está surfando de longboard e quer voltar para pranchinha. Nós aqui na Pro Ilha queremos ver o cara evoluir, se sentir bem. Quero ter a sensação de ver o cara surfando bem, pegando altas ondas. Você pode até tentar usar uma prancha de alta performance sem estar no rip ou ter habilidade pra isso. Mas se você pilota um carro popular, provavelmente, não vai conseguir pilotar um F-1.

O que você acha das piscinas de ondas artificiais no que concerne à influencia no design de pranchas de surfe nos próximos anos?
Eu acho fantástico as piscinas apesar de ser uma grande polêmica. Acho fantástico para o mercado do surfe em geral. Não dependemos de condição natureza, ali você tem onda com qualidade, com tamanho. Será excelente para aprimorar detalhes, curvas, densidades e acho que estamos em plena evolução. Sem contar que como estão rolando piscinas, o público de surfistas aumenta e nosso mercado vai crescer ainda mais. Eu desenvolvo pranchas de Wake Surf para um pessoal de Brasília, e inclusive eu faço um trabalho com o Marcos Protta líder com campeonato brasileiro de Wake Surf. Eu não tinha ideia da qualidade de surfistas que tem no Cerrado. No DF temos surfistas que surfam no mundo todo e realmente pegam bem. Imagina com a piscinas de ondas?! Teremos surfistas de alto nível em cidades do interior de São Paulo, por exemplo, onde o PIB é bem alto. E isso acaba que fortalece o esporte como um todo. Tenho visto caras fazendo mix diferentes para a piscina e estamos em plena evolução. Isso não só no ramo das pranchas, mas do life style do surfe como um todo.

Mesmo com os modelos prontos, ainda há clientes que buscam pranchas, digamos, mais customizadas?
Existem, mas são minoria. A maioria bate o olho naquele modelo e fecha. Mas ainda tem o cara mais conservador. Nesse caso a gente customiza para o cliente. Criamos um modelo exclusivo pra ele. O cara pensa que nenhuma dessa encaixou pra mim e tal. A partir daí, eu crio um shape exclusivo para o cliente.

Como você integra o feedback da sua equipe no processo de design das pranchas
Cada atleta passa um feedback em cima daquele modelo que ele está usando. Tento captar o máximo possível e materializar isso em um shape. Nem todos atletas entendem de pranchas, mas alguns entendem e conseguem me passar informações mais técnicas. Outros me passam informações mais no feeling, que eu tento transformar em medidas. É um trabalho minucioso e detalhado, mas essencial. A evolução do design depende muito da evolução do atleta e com um trabalho a longo prazo você vê os resultados aparecerem. O cara tem que testar, viajar bastante, pra gente chegar a um consenso.

Em sua opinião, as próximas inovações em pranchas de surfe caminham na direção de novos materiais de laminação (a exemplo do que está acontecendo com as pranchas feitas inteiramente com fibra de carbono), ou ainda há espaço para mudanças significativas em termos de design?
Em questão de design sempre há variações mas a base tem sido a mesma. Mas as tendências mudam constantemente, às vezes as pranchas alargam, às vezes estreitam de novo. Depois aumentam, diminuem. Na realidade acredito que o que teremos serão ajustes finos no design, mas nada muito significativo. A evolução segue mais no caminho do material. Temos experiências a fazer pois a própria fibra está mudando: gramatura diferente, pesos diferentes, resinas diferentes, e nesse contexto ainda temos muito a explorar.

Como é trabalhar em uma fábrica grande como a Pro Ilha?
Pra mim é uma honra. Já conhecia a Pro Ilha de nome e quando comecei a trabalhar com eles fiquei muito feliz ao perceber que é uma empresa nos dá todo suporte. Temos uma equipe para tudo e então fica fácil para eu me dedicar à minha atividade, que é o shape e o design. Cada pedacinho da prancha é feito por um funcionário. São 40 funcionários e produzimos cerca de 600 pranchas por mês. Pra você ter uma ideia, são três máquinas computadorizadas. Durante a pandemia – quando a produção aumentou – foram 1200 pranchas mês. Nós exportamos para a América do Sul, América Central, América do Norte e Europa. Estar atrelado a uma fábrica desse porte me ajuda bastante a evoluir como shape, pois lido com shapers globais. Acompanho a tendência internacional. Hoje trabalhamos com a Sharp Eye, Johnny Cabianca, shaper de Gabriel Medina (parte das pranchas do Medina são feitas na Pro Ilha), as Rusty da Califórnia, Simmon, Snappy entre outros. São Chico é uma cidade muito pequena, sendo a terceira cidade mais antiga do Brasil. Assim como Jean da silva, Pato, entre outros, são motivo de orgulho para a cidade, a Pro Ilha também o é.

Quem são seus test riders?
Santiago Muniz, Adriano de Souza, Noah Machado, Murilo Brandt, Iuri Gabriel, Iasmim Dias, Mirna Boelsma (holandesa), Susan Leal, Gustavo Ramos (disputa o circuito CBSURF); Gabriel Castigliolla; Alexia Monteiro (sétima colocada no ISA World Surfing Games 2023), Rafael Imhof, Kaylane e Kyara, Miguel e Matheus Amaral, Marcos Protta (Equipe Mormaii Wakesurf em Brasília) e Henrique “Surf boy” Cavilha.

Clique aqui para obter mais informaões no site Pro Ilha.