Nelsinho Macaco

A lenda de Nelson Ferreira

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Nelson Ferreira e o filho Keone, campeão da categoria Grommet na primeira etapa do circuito capixaba amador. Foto: Oswaldo Bissoli.

Nas eras remotíssimas, das quais a lembrança é apenas um sussurro temerário, antes da luz, antes da ponte, antes da rede, pouco depois da barbárie; nos tempos de obscura memória, ilha e continente eram separados por mares abissais, repletos de criaturas assombrosas e inomináveis que devoravam mundos.

 

Nestes tempos imemoriais, as tribos da ilha e do continente, separadas pelo abismo, quase nunca se encontravam. Mas, eventualmente, isso acontecia.

 

E, quando acontecia, batalhas olímpicas tinham lugar; combates que obscureciam o próprio sol; verdadeiras carnificinas, banhos de sangue, suor, lágrimas; sim, choro e ranger de dentes. Ao final, corpos de guerreiros estendidos pelos vales, viúvas e órfãos carpindo seus mortos, de parte a parte.

 

Os chefes das tribos reuniram-se em conselho pacífico. Era preciso construir uma passagem segura, que os livrasse a todos dos perigos do abismo, e permitisse o trânsito da ilha para a terra firme, e vice-versa; havia coisas boas em ambos os lados do mar.

 

Sabiamente decidiram que a mortalidade precisava acabar, antes que se extinguissem as tribos, antes que se extinguisse a raça. Selaram a paz, sem cachimbo, pois o fumo, diziam, é prejudicial à saúde. Nossos ancestrais eram sábios. Decidiram que, em vez de lutas encarniçadas e mortais, os bravos entrariam em outro tipo de combate, o combate esportivo.

 

Como eram povos das águas, deveriam se enfrentar no esporte que sintetizava a essência daquela gente valente e amante da vida e da natureza. Em vez de lutas corporais, campeonatos de surfe!

 

Foi aí que surgiu a lenda de Nelson, o guerreiro-macaco. Nelson, do clã Ferreira, era um surfista-guerreiro grande e pesado, porém fluido e veloz. Sua descomunal força e agilidade a despeito do tamanho, lhe renderam o apelido de Nelsinho (nas tribos de surfistas-guerreiros, não importa o tamanho do sujeito; ele pode ter 2 metros de altura, mas terá sempre um apelido diminutivo) Macaco.

 

Goofy-footer, Nelsinho protagonizou, ao lado de Saulinho (olha o diminutivo aí!) Fidalgo e Newtinho (olha! De novo!) Miranda, algumas das páginas mais célebres da saudável rivalidade surfística que havia entre ilha e continente naqueles tempos distantes, também chamados ?anos 80?, a era de ouro do surfe capixaba.

 

O surfe de Nelsinho se caracterizava pela extrema força aplicada nas manobras, aliada à polidez de movimentos. As batidas verticais e potentes e os fortes cutbacks, que jogavam litros de água para o alto, eram sua marca registrada. Mesmo os torcedores dos surfistas canelas-verdes eram obrigados a concordar: o Macaco era um adversário sinistro!

 

Além disso, Nelson se adaptava bem a qualquer tipo de onda, desde os pesados tubos do Barrão às merrecas cheias do Solemar. Essa versatilidade lhe rendeu vários títulos no cenário das competições locais.

Sua habilidade no esporte das ondas e sua extrema competitividade o levaram a um feito até hoje inigualado por qualquer surfista local: Nelsinho foi quarto colocado no primeiro ano do Circuito Brasileiro de Surfe Profissional (1987), superando adversários do calibre de Carlos Burle, Fred D?Orey, Cauli Rodrigues e Dadá Figueiredo, entre outras feras.

 

Isso numa época em que o julgamento valorizava mais a quantidade de manobras por onda do que a radicalidade. Talvez, se Martin Potter (para quem não sabe, tio do Harry) tivesse antecipado a revolução do power surf em alguns anos, Nelsinho pudesse alcançar resultados ainda mais expressivos.

 

De novo: para quem não sabe, Potter foi campeão mundial em 1989, depois de anos de competição, perdendo muitas vezes para surfistas ?enceradores de ondas?, que faziam dúzias de manobras sem expressão ao longo das ondas, aliviando na parte crítica da parede e soltando várias batidinhas no inside; MP foi, com suas performances arrasadoras, o grande responsável pela mudança desse paradigma, praticamente obrigando os juízes a valorizar a força e a pressão das manobras feitas na parte crítica das ondas.

 

Hoje, Nelson Ferreira, o Nelsinho Macaco, é o cacique maior da tribo dos guerreiros-surfistas. No comando da Federação Estadual de Surfe, vem procurando desenvolver um trabalho que permita aos atletas capixabas alcançarem um lugar ao sol no seleto grupo dos melhores surfistas do país. Com certeza, Nelson tem condições para realizar tal façanha: afinal, ele já esteve lá!