Leitura de Onda

Um João no lugar certo

Colunista Tulio Brandão detalha as muitas razões para a vitória de João Chianca na etapa portuguesa do CT.

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João Chianca no MEO Pro Portugal 2023: refino técnico raro em tubos difíceis.

“A primeira de muitas”, vaticinou um visionário Shaun Tomson, campeão do mundo em 1977. “É só o começo”, bancou o nosso tricampeão do mundo Gabriel Medina. A vitória de João Chianca na etapa portuguesa do WCT 2023 carrega realmente uma forte ideia de ponto de partida, de marco zero de uma carreira muito vencedora.

(A mesma lógica pode ser usada para Caitlin Simmers, que antes da corte da primeira temporada vence a primeira prova. Seu título mundial virá antes do esperado.)

A performance demonstrada por João em Supertubos, seja na final contra o australiano Jack Robinson ou nas outras fases, reúne um conjunto de componentes impossível de não chamar a atenção do mundo: refino técnico raro em tubos difíceis, plena capacidade física, emoção despejada no lugar certo e alegria.

João encontrou de vez o seu lugar no mundo. Não é no Challenger, onde penou para conquistar os pontos necessários a uma vaga na elite, nem muito menos no Qualifying Series, por onde passou sem muito protagonismo. No atual formato das divisões de acesso, o talento muitas vezes fica solapado por ondas de má qualidade e por um julgamento com critérios que acabam celebrando a mediocridade e desvalorizando o risco.

Na elite, Chumbinho oferece a entrega total, o brilho emocionado nos olhos e um surfe à flor da pele que lembram inevitavelmente Neco Padaratz em seu auge. Mas, sem qualquer demérito à belíssima história do catarinense no WCT, o prodígio de Saquarema chega com uma arma extra no pacote: a técnica brutal em ondas de consequência. João está no caminho de ser o melhor nessas arenas.

João Chianca encontra de vez o seu lugar no mundo.

Na final de Peniche, amassou sem dó o líder da temporada, empilhando notas altas em sequência, quase todas na casa do excelente, até deixar o australiano em combinação. No fim, Robinson brigou para reduzir a distância, mas João sobrou, dando-se ao luxo de descartar um 8,13 e um 7,83. Um duelo mágico, de líder contra vice-líder.

Na semifinal, João não tomou conhecimento do valente Cal Robson, dono de uma prancha de bico branco e da única nota dez da temporada até agora, na repescagem de Peniche. O australiano, que vinha encaixado nos violentos caroços para a direita, também foi jogado no corner da combinação pelo brasileiro, num placar 17 a 10.

O mar difícil das fases era uma barreira importante a notas altas, mas João conseguiu dar o recado de seu conforto nas ondas de Peniche. Passou quase sem sustos por Kelly Slater, Ethan Ewing e Connor O’Leary.

(Kelly, aliás, anunciou pela enésima vez a provável aposentadoria. E, de novo, atraiu a atenção para si com sua declaração. Mesmo com uma turbinada no julgamento, que lhe garantiu a melhor nota da bateria, um 7,33, não resistiu a João. Seria muito bom vê-lo encerrar a carreira nas Olimpíadas, mas a vaga dele parece irremediavelmente condicionada à conquista de mais uma vaga pela equipe dos EUA no evento da ISA.)

Yago Dora surfa muito, mas para na semifinal diante de Jack Robinson.

Na outra chave, estava uma aposta pessoal para esta temporada. Yago Dora surfou bem mais uma vez no ano, mas foi derrotado na semifinal para seu companheiro de viagem Robinson, com quem divide a atenção do técnico Leandro Dora. Com o resultado, fica a dois postos do corte da vaga de Trestles. Antes de chegar a San Clemente, porém, é importante que o surfista nascido na fria Curitiba rompa a barreira da final e, oxalá, de uma primeira vitória. Não pode perder o timing, está no momento certo da carreira e de sua maturidade técnica para atacar o topo do ranking.

Nas quartas de final, Yago derrotou um dos melhores surfistas da temporada até aqui, Griffin Colapinto. Na fase anterior, o californiano havia parado, pela segunda vez seguida, Gabriel Medina, mas não conseguiu manter o ritmo avassalador. Ainda assim, com o resultado, entrou na lista dos 5 de Trestles. Pelo surfe apresentado e pelo gosto declarado dos juízes, será difícil retirá-lo de lá. E, em San Clemente, o local Griffin talvez seja o maior obstáculo a um possível bicampeonato mundial de Filipe Toledo.

Gabriel lidera a lista dos campeões do mundo que ainda não conseguiram encontrar ritmo e, sobretudo, constância de performance para conseguir furar o bloqueio das fases finais nesta temporada. No caso do surfista de Maresias, o seeding alterado pela decisão do sabático e pela contusão (na última temporada, pela primeira vez desde 2014 ele não ficou no top 3) não cabe como justificativa para as derrotas.

Ele sabe que, para ser campeão do mundo, é preciso derrotar os melhores, não importa a fase do evento nem a condição do mar.

Kelly Slater anuncia aposentadoria pela enésima vez.

A boa notícia para Gabriel é saber que a vaga no top 5 ainda não está distante – ele está a quatro mil pontos do quinto colocado, Griffin. Mas, para voltar a vencer, o tricampeão terá que acionar novamente o modo freak e a fúria competitiva.

Outro campeão até agora sem resultados em 2023, Italo Ferreira surfou muito bem em Peniche. Perdeu por décimos nas oitavas, numa bateria renhida com Yago. Talvez tenham faltado dois décimos justos à melhor nota do potiguar, um belíssimo tubo pontuado com um 9,33, mas o dono do título mundial de 2019 perdeu precisando de um medíocre 5,60 – nota alcançável mesmo nas condições difíceis do dia em Peniche.

Isso sem falar de John John Florence, mais um campeão e favorito a título a não aparecer para a temporada. Para todos eles, ainda há tempo de reagir.

Filipe Toledo, depois de vencer Sunset, pareceu ter entrado com a prancha errada em Supertubos e perdeu inexplicavelmente para o não mais que esforçado Joan Duru. Ele ainda está em posição confortável na temporada, mas não pode perder desta forma.

Jack Robinson durante o MEO Pro Portugal 2023.

Trestles x líderes

Com o desenho dos protagonistas da temporada começando a ganhar forma, Trestles volta ao centro do debate. A insossa e previsível onda de San Clemente, sem qualquer rodeio, é inimiga da exuberância do surfe dos dois líderes do ranking mundial.

Robinson e Chianca têm técnicas finamente moldadas para as ondas mais difíceis do mundo, mas não são favoritos na arena californiana. Se o ranking se definir com esses líderes, a WSL, ao decidir dar o título mundial ao melhor surfista num único dia numa onda reconhecidamente sem pulso, encomenda um problema– que já aconteceu, aliás, no feminino. Se não houver surpresa, o julgamento terá que se contorcer para garantir a vitória de um desses dois excelentes surfistas em San Clemente.

De todo modo, por enquanto, vamos à perna australiana, com Bells e Margaret River em sequência, de olho em possíveis erros de julgamento dos aussies em casa, como tem acontecido sistematicamente nas últimas temporadas.

Que toque a sirene em Victoria.