Leitura de Onda

O aprendiz

0

São Conrado, ondas em forma de divã para a divagação do colunista. Foto: Pedro Monteiro.

Dia desses, precisava organizar as ideias, esfriar a cabeça. Como meu psicanalista é o horizonte do mar, catei meu calmante – a velha Joca Secco 6´ – e corri para uma curta sessão de terapia no canto esquerdo de São Conrado.

 

Dei sorte de precisar do mar num dia seco, depois de longa estiagem. Assim, meu divã preferido não estava lá tão carregado pelo cheiro de esgoto, infelizmente rotina no pico. 

 

Mas toda terapia tem seu preço. O outside não estava muito calmo. Uma energizada nuvem de surfistas e bodyboarders disputava cada palmo das sempre atraentes esquerdas que explodem ferozmente naquele canto de praia.

 

E eu, que estava lá para me acalmar, remava nervosamente, em busca da sorte de uma ladeira bonita que viesse na minha direção, só na minha direção. Quase um milagre, naquele espaço muito apertado para tanta gente atrás da mesma coisa. 

 

Confesso que não sou afeito a picos lotados, com mais surfista que onda. Sempre achei que, em determinadas circunstâncias, a experiência sensorial do esporte fica comprometida por sentimentos estranhos, como a cobiça e a fúria. Na melhor das hipóteses, é aquela sensação “my precious” de Sméagol, personagem de “Senhor dos Anéis”.

 

De volta ao mundo real, um surfista de grande centro urbano, especialmente o Rio de Janeiro, não pode sofrer tanto com o acirramento da competição pelo pote de ouro. Aqui, é muito raro surfar sem crowd. O esporte tem sido mesmo difícil de ser praticado, sobretudo para os mais experientes e exigentes, que esperam mais da onda, da manobra, da sessão.

 

No meio do devaneio, sentado no outside, olhei para a direita, fora do pico e, numa área com apenas algumas sobras de onda que fechavam, vi um garoto iniciante sorrindo, sorrindo muito. Aquilo me tomou a atenção, até esqueci a série que se espreitava. 

 

Passei a acompanhar atentamente os movimentos do moleque: a remada débil, a embicada, o caldo, a próxima onda. Desta vez, uma remada mais firme, o drope, a prancha deslizando pela parede, o primeiro corte, a onda completa. 

 

O brilho nos olhos denunciava que o moleque não cabia em si. Com razão.

 

Voltei a mirar o horizonte, meu velho amigo. De repente, daquela linha horizontal, nascia um pico agudo, insinuante, que corria para a costa exatamente na minha direção. 

 

Virei, me esforcei para superar a remada débil – pela soma maldosa de idade e falta de ritmo – e me taquei na parede. Coloquei a prancha, como diz o manual local, no velho trilho de “sancoline”. O tubo não rodou. Mas, naquele momento, não estava atrás de performance. 

 

Como os antigos polinésios e como o garoto que eu observara pouco antes, eu buscava apenas o mais original dos prazeres: deslizar pela parede da onda.

 

Saí da água mais leve que a água, com as ideias reorganizadas na cabeça e um sorriso parecido com o do aprendiz que comemora o simples fato de estar no mar, sobre uma prancha.

 

Tulio Brandão é jornalista, colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou nove anos no Globo como setorista de meio ambiente e outros três anos no Jornal do Brasil, onde cobriu surf e outros esportes de prancha. Atuou ainda como gerente de Sustentabilidade da Approach Comunicação. Na redação, ganhou dois prêmios Esso, um Grande Prêmio CNT e um Prêmio Abrelpe.

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".