Leitura de Onda

Um bilhão de toneladas

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Uma velha máxima era repetida à exaustão pelas populações ribeirinhas do Paraíba do Sul, rio fundamental para o abastecimento da Região Sudeste:

 

“Jogue no rio, que o rio corre para o mar.”

 

Assim mesmo, sem meias palavras, o rio era – e em alguns recantos do Brasil ainda é – uma espécie de grande esteira que leva o lixo e o esgoto, esses filhos historicamente rejeitados da cultura ocidental, para longe do quintal.

 

Prova disso é a lógica com a qual sempre foram construídas as casas ribeirinhas, de costas para o rio e de frente para a estrada. A natureza é a porta de serviços.

 

O gigante Paraíba do Sul encontra o seu destino na altura da costa de Atafona, distrito de São João da Barra. É ali que o mar recebe essa cultura de lixo.

 

A imensidão salgada sempre foi tratada como solução para a diluição de toda a carga orgânica de esgoto do mundo. Mas, quando o assunto é lixo, os oceanos não conseguem fazer a mágica do desaparecimento. O cobertor é curto.

 

Dias atrás, o amigo Pedro da Cunha e Menezes, um dos mais respeitados especialistas em unidades de conservação do Brasil, mandou-me algumas fotos intrigantes. Em suas andanças por áreas protegidas costeiras, algumas delas pérolas da natureza, ele deparou com a repetição de um estranho padrão: praias virgens, sem a presença de banhistas, repletas de lixo plástico.

 

As fotos mostram o lixo nas areias de belas áreas como a Reserva Natural das Dunas de São Jacinto (Portugal), da Reserva Natural das Lagoas da Sancha e Santo André (Portugal), do Parque Nacional Levera (Granada, Caribe) e do Parque Nacional Djvaste (Albânia).

 

A Ospar (Convention for the Protection of Marine Environment of the North-east Atlantic) produziu um inventário de resíduos que chegaram à costa da Europa durante cinco anos. A variedade é enorme, mas prevalecem itens como pedaços de plástico, hastes flexíveis, garrafas pet e plásticos da indústria.

 

As praias visitadas por Pedro são apenas a ponta de uma mancha de plástico espalhada pelos mares do mundo. Os dados mais recentes mostram que há, hoje, mais de um bilhão de toneladas resíduos de plástico nos oceanos.

 

O lixo também é nosso. Um exemplo local de costa tomada por lixo está nos manguezais da Baía de Guanabara. Os rios que lá desembocam carregam uma enorme massa de pets, plásticos e outros resíduos, que ficam presas na lama e nos galhos dos mangues sobreviventes. O ecossistema, conhecido pela fama de berçário de ecossistemas marinhos, vira um depósito de lixo.

 

O problema é grave também em alto mar. Pesquisadores já identificaram uma enorme concentração de resíduos, chamada de Grande Porção de Lixo do Pacífico (Great Pacific Garbage Patch), na área de giro da corrente marítima daquele oceano, que concentra um enorme volume de lixo plástico vindo dos continentes, entre o Oeste da América do Norte e o Leste da Ásia.

 

Nas diversas tentativas de estimar o seu perímetro, chegaram a valores assustadores, que variam de 700 mil a 15 milhões de quilômetros quadrados.

 

A maior parte, mesmo, a gente não vê. Os acadêmicos estimam que apenas 30% dos resíduos ficam na superfície. A enorme massa restante desce, sendo depositada como um passivo praticamente eterno, no fundo do mar.

 

De volta à simbólica Baía de Guanabara, tão olímpica quanto suja, estudos estimam que lá sejam lançados, por dia, 80 toneladas de lixo. Não é difícil imaginar, portanto, como está boa parte do fundo da Baía.

 

Quando vivo, o geógrafo Elmo Amador, um dos maiores especialistas do mundo naquela área, já tentava alertar para o problema.

 

“Já são pelo menos 20 quilômetros quadrados de fundo completamente perdido, revestido com plástico e outros materiais, a ponto de não existir mais peixe, nada. A retirada desse lixo é ainda mais delicada que a do que flutua. Requer mais tecnologia”, disse o pesquisador, em reportagem publicada em 2008, bem antes de o Rio ser eleito a nova capital olímpica e a Baía, a raia oficial.

 

Não é preciso falar muito sobre o óbvio: os peixes e outros animais marinhos consomem indiscriminadamente esse lixo, que muitas vezes é tóxico. E, claro, por tabela, nós também, em grandes quantidades.

 

Com o desenvolvimento dos países, com o notável aumento do poder de consumo de nações em desenvolvimento, o volume de lixo aumenta significativamente. O colapso de baías, mares e oceanos é uma tragédia anunciada, mas há esforços em todos os cantos para mudar a história.

 

Organizações formadas em muitos casos por surfistas tentam quebrar essa cadeia, com campanhas de educação ambiental espalhadas pelo Brasil e pelo mundo. São frequentes mutirões de limpeza das praias e do mar. Um exemplo, num microcosmo que segue a lógica do local para o global, é o bom trabalho realizado pelo Projeto Praia Limpa de Torres, no Rio Grande do Sul.

 

É preciso acreditar na possibilidade de multiplicação dessas ações pelas regiões costeiras do mundo, sem pensar que isso isoladamente será suficiente.

 

O caminho para a mudança envolve ainda padrões mais sustentáveis de consumo; a redução brutal do uso de embalagens em produtos; a execução de novas políticas de gestão de resíduos sólidos, como a responsabilidade pós-consumo e a logística reversa; e, claro, educação. Muita educação. 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".