Bruno Valente

Voos sobre Nazaré

Português Bruno Valente se divide entre os saltos de base jump e a pilotagem de jet-ski em Nazaré, Portugal.

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São 4 horas da madrugada e não passa uma alma viva. O Casino de Lisboa fechou, as persianas dos prédios estão fechadas e os carros passam em intervalos espaçados. É uma zona cara onde vivem políticos, chineses abastados e empresários da capital portuguesa.

Escondido atrás de um pilar, aponta um laser para a torre de metal que se ergue à sua frente, mede altitude e ângulos e faz um cálculo essencial: o tempo de queda livre. São quase 70 metros, dois segundos até abrir a asa, um salto considerado seguro.

Depois de 20 minutos de escadas, subindo degrau a degrau, com o equipamento às costas, ele avisa via rádio: “Tem vento, vou esperar um pouco. Já falo contigo”. Um grupo de três homens aproxima-se, curiosos com duas pessoas olhando fixamente para a torre a meio da noite. “Não salte ainda”, avisa o amigo via rádio. “Não sei se são seguranças, mas parece que vão subir.”

Fazem exatamente o mesmo caminho feito por Bruno Valente mas são interrompidos após meia dúzia de degraus por um barulho que quebra o silêncio da madrugada: a asa de um paraquedas a abrir violentamente a meio da escuridão. “O que é isto?!”, grita um deles. O voo é rápido e quem estava nas escadas pouco mais conseguiu ver do que a imagem improvável de um paraquedas a cruzar uma avenida.

Bruno desceu vertiginosamente três ou quatro metros, abriu a asa, desviou-se dos postes da rua e aterrissou em pé. Trinta segundos depois estava no carro. O amigo treme. “É como dirigir”, diz Bruno. “Quem que vai ao lado tem sempre mais medo.”

Bruno Valente cresceu em Salreu e gostava de pescar e de subir em árvores. “Passava a vida a levar pontos no hospital. Tantos cabelos brancos que dei à minha mãe”, conta. A morte da mãe, quando ele tinha 20 anos, marcou-o para sempre. Só via o pai aos fins de semana, apoiou-se nos amigos e chegou a viver adotado por uma família durante quase dois anos.

Foi jogador federado de handebol, andou de BMX mas foi numa linha de montagem que ganhou o primeiro salário. Das fábricas passou para lojas de moda, viveu nas ruas do Rio de Janeiro e com uma namorada no Sul de Espanha. Trabalha esporadicamente como piloto de jet ski nos dias mais pesados da praia do Norte e ainda hoje é um basejumper underground.

Bruno estava há anos sem sair de casa quando viu um vídeo de um salto em wingsuit. “Para alguém mergulhado numa depressão profunda, que praticamente só respirava, ver aquele salto foi como sentir o coração a bater novamente. Só pensei, é isto”, disse.

Saltar de um avião foi o primeiro passo até chegar ao almejado base jump. Conheceu alguns praticantes na Internet, trocou mensagens, resgatou os seus últimos 1.500 euros de uma conta de pôquer online e investiu num curso de skydive.

Uma espécie de regra número um para quem está a começar a saltar é ler a lista das fatalidades ocorridas desde o primeiro salto em 1981 até hoje. Esta lista dos 312 atletas que morreram foi a primeira lição de Bruno e de muitos outros praticantes. “Ainda quer fazer base? Então leia a lista outra vez”, aconselha um dos principais sites da modalidade.

A experiência é essencial para sobreviver neste esporte, que é a versão mais radical do paraquedismo.O seu instrutor disse-lhe que é preciso primeiro entender sobre aerodinâmica e equilíbrio, dominar a queda livre, perceber como funciona o centro de gravidade e que levaria um certo tempo até fazer base jump.

Duzentos saltos de um avião é o que se estima razoável para saber sair de diferentes situações de perigo, porém, 40 saltos de avião acompanhado pelo instrutor foram suficientes para ele aprender a controlar o corpo, o paraquedas e sentir-se apto para avançar para o próximo passo.

Em dezembro de 2014 Bruno lançou-se pela primeira vez de uma ponte em Coimbra. “Todos os meus saltos tinham tido um objetivo: treinar para o base Jump, aprender a ir logo aos manobradores, controlar bem a asa, endireitar rapidamente caso a abertura fosse de lado”, disse.

Atualmente, enquanto a cidade dorme, Bruno escala gruas, monumentos e antenas para fazer uma das coisas que mais gosta, sentir o seu corpo em queda-livre.

Bruno sempre busca lugares diferentes para as suas façanhas, mas saltar do Sítio da Nazaré e do Aqueduto das Águas Livres em Lisboa tem um gosto especial para ele. Quando tomou conhecimento e leu a biografia da história macabra do serial killer Diogo Alves que atirou 70 pessoas do Aqueduto no princípio do século XIX ele ainda não sonhava voar.

Ficou tão intrigado com o assassino que no dia em que se lançou do monumento lisboeta pela primeira vez prometeu fazer um salto por cada uma das 70 vítimas. Quando começou a saltar no aqueduto, Bruno costumava entrar durante o dia como um simples turista de mochila às costas. Entrava, mas nunca saía. A partir do momento em que os funcionários o descobriram, passou a fazer visitas clandestinas durante a noite. Para não ser acusado de não pagar bilhete, escondia uma caixa num dos arcos onde depositava os três euros da entrada ou pedia aos turistas para lhe comprarem bilhete.

No solo um amigo o orienta através de um rádio, será ele a dar o sinal quando a zona de aterrissagem estiver livre e a pegá-lo de carro assim que chegar ao chão. A operação é rápida e não admite falhas. A partir do momento em que passa a vedação e começa a correr até ao local do salto passarão apenas breves minutos.

“Lá em cima fico exposto. Há edifícios à volta, qualquer pessoa pode ver-me e chamar a polícia”. Facilmente se percebe que o seu maior medo é a polícia. Já foi abordado pelas autoridades em diferentes ocasiões. Numa delas, após um salto do aqueduto, aterrissou praticamente à frente de um carro da Polícia e foi levado a delegacia, libertado pouco depois e mais tarde teve que se apresentar a um juiz. Ainda conseguiu recuperar o equipamento que lhe tinha sido apreendido, mas não se livrou de uma pena de trabalho comunitário.

Quem o acompanha nessas empreitadas sente um calafrio só de olhar sua silhueta a debruçar-se lado de fora do aqueduto. O salto de 60 metros dura poucos segundos até à abertura do paraquedas. Não há tempo para celebrar, somente arrumar apressadamente o equipamento, correr à procura do resgate e finalizar a missão.

O base jump não é ilegal, mas na vertente urbana é frequente os praticantes terem de entrar em propriedades privadas para conseguirem saltar, ter que transpor gradeamentos que rodeiam grandes antenas de telecomunicações ou furar a segurança de edifícios bem protegidos, onde não é fácil chegar ao telhado.

Quando salta clandestinamente, Bruno tem as suas regras, jamais coloca terceiros em perigo, não estraga nada nem deixa vestígios. É a minha ética, nunca prejudicar ninguém e se necessário passo horas em cima de uma grua à espera das condições ideais.

Outras vezes é necessário assumir personagens: Bruno chegou a vestir fato e gravata para entrar num edifício de luxo em Lisboa sem chamar a atenção. “Vejo bem o objeto, tento perceber como vou chegar lá em cima, se a aterrissagem é segura. Por vezes subo para avaliar as condições, ver por onde vêm os carros, medir a altura e equacionar cenários, se a asa vira para um lado que margem tenho para recuperar”.

O base é uma modalidade extrema independente da altura do salto e ao contrário do que muita gente pensa, quanto menor a altura mais difícil e técnico ele é. São esse saltos que mais o atraem, o motivo?

“Inconscientemente poderá ser isso, a pouca margem e o risco elevado. Mas não o faria se não fosse capaz de o fazer bem. A última coisa que penso é se o paraquedas vai abrir. Assumo os riscos mas sou muito rigoroso com a minha segurança. Tenho total confiança no material”, diz Bruno.

A parte mais alta de Nazaré tornou-se destino desta comunidade pelo salto que proporciona em frente ao mar com aterrissagem na praia, quem observa a cena da a partir da praia ou do morro vai a loucura batendo palmas e gritando. Ali, Bruno fez mais de 300 saltos de várias maneiras, tem o plano de saltar com uma prancha de bodyboard, aterrissar em uma onda na praia da Vila e finalizá-la surfando.

Apenas não concretizou ainda esse plano porque está sem patrocínio e não quer danificar o seu único equipamento.Tem a ideia de fazer uma competição de base jump no Sítio da Nazaré, que é um local perfeito para isso e precisaria basicamente de uma grua para possibilitar truques com mais segurança.

Além disso, esteve muito perto de quebrar o atual recorde do Guinness de base jump, que é de 27,5 metros ao saltar de 28 em uma grua de Lisboa.

No seu capacete uma frase emblemática, “don’t fuck up and die”, mas com mais de 650 saltos em três anos, o pior que lhe aconteceu foi torcer um pé.

Artigo originalmente publicado pela revista SÁBADO com a colaboração de Gustavo Lermen Silva.