Leitura de Onda

Um toco no arremesso de três

Tulio Brandão faz analogia com o basquete para exaltar a vitória de Italo Ferreira na Newcastle Cup.

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Cada vez mais seguro e consciente do alcance de seus aéreos, Italo Ferreira volta à liderança do Tour.

Italo Ferreira não dá espaço. Sufoca adversários, defende e ataca sem parar, em voltagem máxima, enquanto se alimenta de toda a energia existente à sua volta.

Para adversários, para usar a analogia do basquete, proteger o “garrafão” da melhor onda com a prioridade é tolice – ele vai fazer pontos em qualquer rampa improvável.

E, mesmo que saiam na frente, os oponentes sabem que será difícil segurar essa força bruta da natureza, um sujeito capaz de surfar 17 ondas em 30 minutos e sair da água com a vitória na bateria e um sorriso maroto no rosto.

Esse cara, claro, venceu a primeira etapa da era contemporânea do World Championship Tour, realizada em Newcastle, na Austrália.

O vice, Gabriel Medina, comemorou encenando os movimentos de uma cesta de três pontos do basquete a melhor onda do ano, um aéreo inexplicável, na semifinal contra o local Morgan Cibilic. Homenageava o amigo Jimmy Butler, estrela do Miami Heat.

Na final, Italo deu o toco e evitou novo “arremesso” vencedor de Medina.

Na final, Italo deu o toco e o troco – o toco, expressão do basquete, por ter evitado novo “arremesso” vencedor de Gabriel e, de quebra, ter marcado seus pontos; e o troco, claro, por ter vingado a derrota na semifinal de Pipeline, na prova anterior.

Numa final de poucas oportunidades, o energizado Italo, agora com o mais pertinente dos patrocínios, a Red Bull, cada vez mais seguro e mais consciente do alcance de seus aéreos e, por tabela, de suas notas, venceu se utilizando, mais uma vez, de sua principal arma – mas não a única.

O atual campeão mundial volta, portanto, ao lugar que se acostumou a estar, e de onde não dá qualquer pinta de querer sair tão cedo: a liderança do circuito mundial.

Ao que tudo indica, cada vez mais pessoas vão querer vê-lo no mesmo lugar. Italo é, antes de tudo, um encantador de crianças, adultos e idosos felizes de todo o mundo, com sua combinação de técnica, simpatia e, claro, energia. Um ídolo e tanto.

Se o critério não mudar, quem quiser alcançá-lo, como disse um amigo, terá que mergulhar numa poção mágica do Panoramix, o venerável druida responsável pelos líquidos que davam força sobrenatural a Asterix e sua turma nos quadrinhos franceses.

Azar de quem não percebeu: Italo se tornou, faz algum tempo, um super-humano.

Gabriel Medina poderia ter arrancado seu primeiro 10 na temporada.

Por que não um 10?

A WSL perde oportunidades sucessivas de ser justa. Desta vez, tungou na cara dura a primeira nota 10 de Gabriel na temporada, na tal onda da semifinal.

Vejam o replay. Com os atuais critérios de julgamento – concorde o leitor ou não com as regras – não há como surrupiar um décimo. A abordagem antes da manobra foi absolutamente limpa, sem quiques. Não lembro de extensão maior – Filipe Toledo fez algo perto disso no Point de Itaúna, anos atrás. A altura também foi rara, embora Italo, Julian Wilson e John John Florence já tenham voado bem alto em outras ondas. Combinar todos esses elementos – movimentos limpos, altura e distância – deveria ser um esforço a ser tratado com mais generosidade pela entidade.

Gabriel atravessou o evento mais uma vez com estratégia. Fez notas altas, como o 8,50 na última onda contra Frederico Morais, mas, como todos os outros, passou algumas baterias com médias baixas. Vale lembrar que, em Pipeline, ele foi à final sem fazer sequer uma nota oito durante a prova – embora, assim como em Newcastle, tenha sido mal julgado em algumas ondas. E isso não é necessariamente ruim.

Ele parece ter assumido postura mais serena, menos ansiosa, que o permite surfar de acordo com o cardápio, quase sempre de modo suficiente para vencer adversários. Kelly, no passado, gostava de ganhar etapas neste ritmo de segurança.

O desafio de Gabriel e de todos os outros será lidar com o desejo nada sereno de Italo.

Local de Merewether Beach, Morgan Cibilic foi uma das boas sensações da etapa.

Cibilic não precisa de empurrão

O local sensação da etapa já tinha sido eleito pela torcida local quando, nas quartas de final, venceu o conterrâneo e bom surfista Ryan Callinan. Ryan é um goofy conectado às paredes de Merewether, mas perdeu antes de entrar na água.

Explico: é difícil competir com Cibilic, mas é ainda mais difícil competir contra um Cibilic turbinado pela boa vontade do painel de juízes.

O garoto não precisa disso – é talentoso, capaz de vencer qualquer surfista, como de fato venceu. Sua melhor onda na bateria contra Gabriel Medina, com uma combinação cirúrgica de duas manobras fortes, no crítico, é prova violenta de sua competência.

Cibilic venceu realmente todas as disputas de Newcastle até a semifinal. Mas, sabemos – eu, você e os juízes – como a turbina nas notas influencia no ânimo do adversário prejudicado. Pressionado, oprimido, ele se vê sem saída. E erra.

John John Florence, quem diria, foi uma vítima da benevolência dos juízes com o local. O havaiano vinha surfando muito. Na bateria, enterrava bordas em ondas pequenas como poucas vezes vi surfistas fazerem. De repente, do lado adversário, surge uma nota 8. E, depois, um 9. O bicampeão, acostumado a impor esses placares aos rivais, perdeu-se na desvantagem, mais larga do que a realidade sugeria.

De toda esta história, três conclusões: Cibilic é um excelente surfista; a Austrália (ou o patrocinador) talvez tenha perdido a mão na construção da narrativa de um novo herói local; e, por fim, gostaria de ter visto John John seguindo adiante. A disputa sempre perde sem ele nas finais.

Filipe Toledo cumpriu o papel de pontuar em busca da vaga para Trestles.

Para Filipe (e para todos), uma seletiva

Filipe Toledo surfou o que se espera de um dos melhores surfistas de ondas de performance do mundo. Em Newcastle, estava na ponta dos cascos, com um extensivo uso de borda e manobras potentes, sem abusar de aéreos. Gosto do surfe do Filipe mesmo longe das alturas, no conforto na superfície líquida.

O terceiro lugar em Newcastle cumpriu o papel de pontuar em busca da vaga para Trestles, o que, no fim das contas, é o que importa nesta temporada. Sem meias palavras, todas as etapas antes da final na onda de San Clemente são, no máximo, seletivas.

Não importa: se ele entrar em quinto, em terceiro ou em primeiro, será franco favorito na onda que domina todas as curvas. Longe da decisão em Oahu, o primeiro título dele nunca foi tão real e, até certo ponto, esperado.

Os brasileiros dominam a arte dos aéreos, mas saudosistas de “linhas mais finas” como Kelly Slater já começam a se queixar.

O silêncio que antecede os aéreos

Os aerialistas do circuito mundial jamais foram tão valorizados, com toda razão. O nível de dificuldade de algumas manobras rotacionais, com altura, extensão e o pouso na parte plana da onda, justifica cada ponto conquistado.

Quem tem o recurso, usa. Os brasileiros dominam a arte, mas há surfistas de todas as nacionalidades presentes na elite decolando em busca de nota.

A manobra, porém, cobra um preço. Para alcançar a velocidade necessária a um aéreo, os surfistas muitas vezes quicam violentamente a prancha, comprometendo toda a extensão da parede até a rampa, num movimento que a escola clássica condena.

Neste caso, acompanho o voto dos defensores de linhas finas. Está feio, embora as manobras de impacto sejam sempre fascinantes. É preciso encontrar um meio do caminho, uma solução que não seja nem o abandono do aéreo como arte nem o abandono da importância do desenho de uma boa linha na parede da onda.

Levanto uma questão ainda sem solução – em todas as tentativas anteriores, a WSL (ou a extinta ASP) acabou virando o leme excessivamente para um lado ou para outro. Admito que esse equilíbrio é difícil, mas é preciso tentar, em nome da sobrevivência da essência do surfe, em nome da arte de deslizar com fluidez sobre uma onda.

Se surfistas forem pressionados por linhas mais bonitas para alcançar o aéreo, certamente encontrarão um caminho. Não há limite para essa gente talentosa.

Nos últimos dias, dois movimentos ligados ao tema chamaram a atenção.

Convidado a comentar rapidamente o evento em Newcastle, Kelly Slater, lesionado, fez questão de dizer, no meio da bateria de Italo, que os aéreos do brasileiro estariam sendo excessivamente valorizados pelos juízes.

(Um adendo rápido: quem acompanha surfe há mais tempo sabe da campanha que o americano fez no distante 2010 contra Jadson André, que o venceu em Imbituba. Consciente de seu poder de influência, Kelly convenceu o mundo do surfe que o aéreo do potiguar não justificava a nota que recebia. Amaldiçoou, assim, uma das principais armas de Jadson e lhe tachou a injusta fama de surfista de uma manobra só.)

De volta a Newcastle, lá estava o velho campeão, a maior raposa do WCT, fazendo a sua crítica, quando Italo remou numa onda mais oca e decolou para um aéreo gigante, com aterrissagem perfeita no flat. Kelly se calou – mas deixou sua crítica no ar.

O outro movimento, que provavelmente nada tem a ver com a nostalgia de arcos limpos (afinal, ainda temos grandes surfistas clássicos na elite), é o convite a Mick Fanning para o wildcard da prova de Narrabeen, que começa esta semana.

Ocorre que o tricampeão é o professor da disciplina de linhas precisas na escola do surfe clássico, dono de um surfe sem arestas e praticamente sem quiques. Um esteta.

Agora, a novidade: Mick, como surfista sem seed, estreia na bateria do Italo, o mais contundente aerialista da elite. Vale observar o confronto de estilos entre os dois surfistas e, claro, como o painel de juízes se comportará. Que busquem o equilíbrio.

Talvez um bom caminho seja prestar atenção na talentosa Carissa Moore, vencedora entre as mulheres. Especialmente na semifinal, ela deu uma aula de surfe.

A ideia de um país praticamente livre da pandemia, como vimos na Austrália, é, para o brasileiro comum, quase uma ficção científica.

A Austrália, a WSL e o Brasil

Escrevo do Brasil, que tem convivido com uma média de 4 mil mortes diárias de Covid. Escrevo do Rio de Janeiro, onde os bares foram reabertos enquanto o estado lidera o percentual de aumento de casos no país. As etapas realizadas na Austrália nos levam para outro lugar, ou mais que isso, para outro tempo. A ideia de um país praticamente livre da pandemia é, para o brasileiro comum, quase uma ficção científica.

Dito isso, é importante marcar o acerto da WSL de levar o circuito mundial para um país beneficiado pelo isolamento geográfico e por políticas acertadas de combate à pandemia. E, naquela profusão de ondas, realizar uma longa perna de quatro etapas, com protocolos rígidos de quarentena e, até agora, nenhum caso de contaminação divulgado. Foi uma alegria ver os locais de Newcastle confraternizando com os surfistas como se estivéssemos em 2019.

Os brasileiros, os mesmos que agora são considerados párias do mundo, deram um jeito de dominar completamente o território livre de vírus. Além de Italo, Gabriel e Filipe, outros dois estiveram nas quartas: Adriano de Souza e Deivid Silva, ambos com bons momentos durante a etapa. O domínio é visto também na bandeira dos dois primeiros do ranking, que não por acaso são os dois últimos campeões do mundo. E a próxima prova é em Narrabeen, pico afeito a essa turma.

A tempestade, pelo visto, seguirá dominando o mundo pós-pandêmico.