Em Bells, polêmicas importaram mais que o surfe. De novo. Não sei você, mas ando cada vez mais cansado de contar a mesma história. Desta vez, a controvérsia foi tão longe que este texto sai antes da final. Não vou escrever de novo quando o campeão for declarado em Victoria. A esta altura, naquelas ondas ordinárias, importa pouco se será Griffin Colapinto, Cole Houshmand, Matthew McGillivray ou Rio Waida.
A controvérsia, de novo, tem como pivô o tricampeão Gabriel Medina, derrotado para o americano Houshmand no round 32. Para fazer uma leitura crítica deste resultado e do critério de julgamento adotado na disputa, sugiro algumas medidas: ir além da onda da virada do estreante, ir além das duas melhores notas de cada surfista e, por fim mas não menos importante, ir além da própria bateria, de modo a enxergar a tendência de julgamento daquela manhã em Winkipop.
Até porque, numa análise isolada, sem considerar qualquer outro contexto, embora a onda se anunciasse como uma marola cheia e deitada, é possível acreditar que a sucessão de pauladas do americano renderia a nota necessária para a vitória.
Mas os erros de julgamento da WSL nem sempre são grosseiros. Ao contrário, muitas vezes estão nas letras miúdas, nos pequenos detalhes.
Há um conjunto de critérios que ancora o surfe na elite. É preciso, antes de tudo, surfar com velocidade, força e fluidez. Espera-se, ainda (ou deveria se esperar), a busca incessante por zonas críticas, o uso da borda nas manobras realizadas na parede da onda e a preferência por manobras de alto grau de dificuldade, como as aéreas, sempre com transições limpas entre cada movimento. Combinar os dois elementos (borda e progressivo) deveria ser meta obrigatória para os melhores do mundo.
Há, ainda, na elite, o gosto por um certo refinamento de movimentos, embora isso não seja apresentado como pré-requisito. Alguns, como Italo Ferreira, subverteram a lógica e alcançaram o título mundial sem esse atributo. O campeão tinha outras armas. Outros, como Jadson André, foram (algumas vezes injustamente) achatados pela mesma razão. Uma parte das boas notas de Ethan Ewing, por exemplo, vem desse refinamento (no caso dele, associado à potência). E, como outros campeões, desde que entrou no tour, Gabriel Medina depurou sensivelmente seus movimentos.
O report da WSL com os critérios específicos para Winkipop, num sábado de direitas sem pulso, falava em combinação de grandes manobras em alta velocidade, variedade das manobras, manobras inovadoras e progressivas com alto grau de dificuldade, habilidade em manter a fluidez entre as manobras e, por fim, comprometimento com o grau de dificuldade em seções críticas e na escolha de manobras.
Apesar do norte dado por esse conjunto de critérios, é na experiência do julgamento que normalmente se apura de modo mais fino o critério do evento. Isoladamente, essas regras não conseguem sequer aproximar o surfe da utopia da objetividade. São como uma peça de engrenagem gasta, com folga – você pode ajustá-la para um lado ou para outro, de acordo com a necessidade (ou conveniência).
Chegamos, então, antes de tudo, à bateria de Ewing contra o wildcard George Pittar, na véspera. O novato foi mais radical, ocupou as seções mais críticas da bateria, esteve nas maiores ondas. Mas os juízes preferiram Ewing, que foi polido e usou seus conhecidos movimentos refinados e precisos. O australiano virou a bateria ao surfar uma onda de baixíssima qualidade, deitada, sem qualquer expressão.
Venceu, portanto, o refinamento. A qualidade da onda é algo secundário. Perdeu a radicalidade e a melhor onda, indicou o painel.
No sábado, o dia abre com a excelente disputa entre Liam O’Brien e Ramzi Bouckhiam. O australiano surfa duas boas ondas, com uma manobra forte e, sobretudo, uma belíssima linha. Mas Ramzi, dono de um backside especialmente potente e preciso, ataca com muito mais força. Em sua última onda, buzzer beater, o marroquino esbagaça uma parede sólida com quatro marteladas e uma finalização fortíssima. Não parecia haver dúvidas da virada, pelo menos para os espectadores, mas os juízes lhe dão um inacreditável 6,8 e mandam para a fase seguinte o surfista da casa.
O recado está dado, mais uma vez: potência não persevera neste evento.
A esta altura, Gabriel e Houshmand já estão na água. Logo que a disputa se inicia, já se estabelece uma diferença: enquanto o americano usa seus 91 quilos distribuídos por 1,90m para jogar água para o espaço, mas surfa com linha mais quebrada, o brasileiro varia mais as manobras, amplia o uso de bordas, escolhe ondas mais longas e não abre mão da potência, embora não na mesma medida que Houshmand.
Como quem desconfia de uma quebra de critério, ou seja, que de repente seu repertório mais completo possa perder para o surfe bruto do adversário, Gabriel tira da cartola um full rotation de backside, de boa amplitude, numa zona crítica da onda e volta de pé depois de duelar por um breve instante com a espuma.
Não foi uma volta limpa, o que deveria, claro, render uma redução de nota, mas o ponto de partida de um aéreo daquela qualidade é altíssimo, na casa dos 9 pontos. Para chegar ao 6,3 dado pelos juízes, foi preciso fazer uma enorme ginástica.
Como uma história que parece ter final conhecido (pelo menos por Richard Lovett, que comentava na transmissão em inglês, excitado, que a bateria “estava longe de acabar”), a dois minutos do fim, Gabriel, mesmo com prioridade, toma o risco ao deixar Houshmand surfar uma marola deitada. O americano desfere um conjunto de pauladas, sendo a mais forte delas com a linha suja.
Desta vez, longe de uma análise isolada, diante do histórico da etapa, com as derrotas prévias dos potentes Ramzi e Pittar para os refinados Liam e Ethan e na comparação com o surfe mais limpo, variado e progressivo de Gabriel, não parecia ser possível a derrota do brasileiro. Mas nada disso parece importar numa etapa australiana.
O critério foi ajustado. É a folga na engrenagem, que permite ajustar a direção do que vale mais ponto conforme a conveniência. A potência agora é só o que importa.
Não acredito em conspiração de juízes, mas confio piamente na capacidade de construir uma verdade a partir de desejos velados. É uma nuvem, uma verdade construída nas conversas de bastidores, na repetição de uma história pelos pares de circuito mundial. Ninguém vai me convencer que australianos e americanos estejam satisfeitos com sete títulos mundiais para surfistas brasileiros em nove disputados.
Se não for nada disso, deve ter sido mesmo uma coincidência louca ver a mudança da regra qualificatória instituída com o Challenger, que, com a implantação de uma cota restrita para a América do Sul (e generosa para EUA e Austrália), limitou assustadoramente o número de brasileiros na briga por uma vaga na elite.
Outro acaso, acaso mesmo, foi a mudança no critério de julgamento instituída em 2023, que achatou a escala de notas de manobras aéreas, movimentos amplamente dominados por brasileiros, aproximando-as do valor de velhas manobras. Veremos o efeito desse retrocesso, desse freio na dinâmica evolutiva do esporte, que caminhava para um harmônico encontro do surfe de borda com o surfe progressivo, nos próximos anos, possivelmente sem os melhores surfistas do mundo na disputa.
A briga segue em Margaret, num circuito cada vez mais apagado por polêmicas.