Muitas Águas

Tudo por uma esquerda

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Molhes do Atalaia escondem os segredos de uma esquerda perfeita. Foto: Diego Freire.

É absolutamente impressionante o que as pessoas ou nós mesmos podemos fazer por uma grande paixão.

 

Lembro-me de ter visto em minha vida, várias vezes na TV, aqueles caras apaixonados que alugam um helicóptero para no dia do aniversário da namorada, mandar aos ares milhares de papéis picotados com recados de “eu te amo”, ou ainda quem comprou um espaço na mídia para divulgar a paixão pelo seu grande amor e por aí vai.

 

A última destas que vi, ainda este mês, foi um sujeito que pediu a mão de sua noiva em casamento, uma apresentadora de televisão, ao vivo e diante de milhares de espectadores.

 

Quando falo em paixão, não estou me referindo

Anos depois, estacionamento da Saveiro continua intacto e preservado. Foto: Diego Freire.

necessariamente a uma pessoa, mas também de uma paixão por uma profissão ou hobbie, seja um esporte, uma música, um compositor, cantor, atriz, filme, etc.

 

Para a maioria esmagadora dos surfistas, creio que o surf é uma grande paixão. Cada um tem seu estilo próprio de pegar as ondas. Pode ser um grommet iniciante ou um “dinossauro” do surf com seus quase 60 anos. Tanto faz se usa uma shortboard, longboard, gunzeira, fish retrô, bodyboard, pés-de-pato para um bom jacaré, stand up board ou mesmo uma tábua de passar roupas!

 

Deslizou sobre as ondas é peixe! E olha que esse negócio pega. Já somos vários milhares de apaixonados pelo mundo afora, com água salgada literalmente correndo dentro de nossas veias!

 

Bom, mas voltando ao assunto das paixões, lembrei-me de um fato em minha vida, que não creio que deve ser comparado aos apaixonados descritos no início deste texto, mas também creio que teve sua boa dose de paixão.

 

Alguns anos atrás, no início da década de 1990, vivendo um dos auges de minha paixão pelo surf, resolvi surfar na praia de Atalaia, em Itajaí (SC).

 

Comentei com alguns amigos meus de minha intenção e abri o convite a alguns deles, que em uníssono me confirmaram que meu carro seria queimado, eu linchado vivo e mandado pra casa todo quebrado, devido ao forte localismo daquela praia.

 

Fiquei desanimado, mas não desisti da idéia. Café aqui, café ali, pensamento aqui, idéia ali e tive um plano mirabolante para realizar meu sonho e viver minha paixão por aquelas esquerdas perfeitas.

 

A idéia era simples, mas apenas realizando-a saberia se meu plano terminaria em sucesso ou desgraça. Comecei então a traçá-lo e sozinho. Arriscaria conquistá-lo. Sem colocar ninguém mais em risco.

 

A primeira parte era a mais fácil. Esperar uma ondulação de Sul grande entrar. Depois do término do vento Sul, na virada para o quadrante Norte, pegar minha Saveiro e sair na madrugada para Itajaí.
Na madrugada mesmo! Tipo 3 horas da manhã!

 

Apenas 100 a quilômetros distante de Floripa, chegaria cedo o suficiente para parar o carro no próprio píer e de lá, aguardar o primeiro sinal de luz e então ainda de noite cair no mar gelado para surfar nem que fosse uma só onda do expresso Atalaia.

 

Precisaria também contar com uma “ajudazinha”. O swell deveria entrar em dia de semana e pedi pra Deus, por favor, enviar mais alguns anjos da guarda para me proteger no caso de algum incidente.

 

Por obra divina, o tal do swell entrou perfeito (PERFEITO), do melhor jeito possível, numa fria semana de junho, próximo ao meu aniversário e durante o meio da semana.

 

Uau! Esta era a expressão que agora eu dizia! As condições estavam bem ali diante de mim. Era pegar ou largar, ou melhor, ir ou ir!

 

E eu fui sozinho, conversando com Deus e de roupa de borracha dirigindo o meu carro.
Meu chapa, nunca tinha feito uma aventura “apaixonesca” tão grande como aquela. O frio era de lascar, daqueles que passa no Jornal Nacional dizendo que nevou em São Joaquim, em Santa Catarina e que as geadas se espalharam por todo estado e os termômetros despencaram!

Quando acordei das poucas horas de uma noite de sono cheia de ansiedade, não pensei duas vezes em colocar minha roupa de borracha, com botinha e gorro.

 

Isto não estava exatamente em meus planos, mas foi a solução que encontrei para resolver a “friaca” de inverno.

 

Os quilômetros foram se passando e a ansiedade foi sendo transformada numa certeza de que tudo daria certo e a expectativa se confirmaria de realmente ter altas ondas e ter valido todo aquele “sacrifício” por uma paixão.

 

Quando me dei conta, já estava com minha saveirinho estacionada bem de frente ao píer onde rolam algumas das melhores esquerdas do Brasil!

 

Ninguém ao meu redor, ou melhor, haviam muitos sim, só que todos dormiam debaixo de suas cobertas.

 

Eu já tinha o meu próprio cobertor, meu wetsuit quentinho. Nem mesmo os enormes navios cargueiros que passam pelo canal do rio Itajaí, estavam em atividade naquele horário, perto das 4:30 da manhã.

 

O sol, no inverno, nasce normalmente pra lá das 6 da manhã. Nesta estação e neste horário da madrugada é quando aquelas baixas temperaturas são registradas.

 

Dentro do carro estava até quente, com os vidros embaçados eu podia escutar o barulho das ondas estourando nas pedras bem ao meu lado. Conseguia, de certa forma, “ver” as espumas das ondas lavando o píer e a maresia já impregnava o pára-brisa do VW.

 

Assim que notei as primeiras luzes invadindo o céu, na força do grande astro que clareia nosso planeta, saí para pegar minha prancha, passar um pouco mais de parafina e raspador, alongar, dar um gole num café com leite que havia trazido comigo e ir até a ponta de uma pedra de onde me lançaria na correnteza que se formava junto ao píer.

 

Já a poucos metros do mar, vi uma série perfeita e grande varrer o outside. Recuei um pouco para não escorregar no limbo das pedras e assim que o mar deu uma trégua, me lancei nas gélidas águas.

 

Comecei a remar freneticamente, esquentando meu corpo e movimentando meus músculos ainda em repouso.

 

O coração batia forte, meus olhos deviam estar brilhando de tanta emoção, estava irradiante de alegria e em poucos segundos estava no outside, exatamente onde quebrara aquela morra poucos minutos antes.

 

Sentei, respirei fundo e olhando para os lados confirmei que estava sozinho. Nenhum sinal de vida humana! Um céu avermelhado começava a se descortinar, as poucas estrelas davam espaço para o romper de um belo e gelado amanhecer.

 

Quando ainda meditava naquele momento de realização, como se estivesse chegado ao topo do Everest, uma massa de água começa a se levantar em minha direção. Foi o tempo de remar, sentir o terral em meu rosto e dropar para uma esquerda tubular que se estendeu por muitos e muitos metros à frente. Fiz a onda até o final, olhei para o fundo e lá vinha outro expresso, sozinho!

 

Meu sonho eu já tinha realizado, que era ao menos surfar uma onda naquele paraíso de esquerdas. Mas olhando para os lados, tudo continuava igual, meu carro não havia sido queimado, eu estava intacto, ninguém havia me agredido, e as ondas estavam acordando para um dia clássico em Atalaia.

 

Voltando para o fundo pelo canal, sem molhar a cabeça, sentei no mesmo lugar para pegar outra onda. Poucos minutos depois da primeira, eu fazia novamente o longo percurso até o inside, manobrando, buscando os tubos, voltando para a espuma da onda em cutbacks e laybacks, sentido o pulsar daquele momento.

 

Estava vivendo intensamente minha paixão e o esforço valera à pena! Foram quase duas horas de surf até que, não abusando da proteção de meus anjos da guarda, resolvi sair pela areia.

 

Debaixo de um céu azul turquesa e ainda frio, mas já aquecido pelas muitas ondas surfadas, enrolei minha cordinha na prancha e subi para o píer onde estava a Saveiro.

 

Abrindo o carro, me esperavam umas bolachas e mais um belo gole de café com leite ainda quente na garrafa térmica.

 

Troquei-me tranquilamente dentro do carro, coloquei meu moletom quentinho, gorro e tomando meu lanche matinal, delirava com aquela conquista, como que tendo vivido um clímax de uma paixão.
Ainda as ondas estavam perfeitas e solitárias. Resolvi não dar oportunidade para o azar e liguei o carro para ir embora.

 

De longe vi um cara andando pela praia para ir surfar. Seria um local? Com certeza sim. Estava solitário, se aquecendo pra surfar sua quota de “expressos Atalaianos”.

 

Agora eu sabia exatamente o que sentia aquele brother na praia. Dei uma última olhada no mar, uma série entrou perfeita com três ondas enquanto meu “parceiro” solitário entrava n’água.

 

Dei duas buzinadas e fui saindo. Continuei olhando pelo retrovisor e pude ver sua mão me acenando de uma maneira cordial. Segui de volta para Floripa, ainda em estado de perplexidade.