Palanque Móvel

Revolução das quilhas

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Ricardo Bocão, criador das quadriquilhas. Foto: Nelson Veiga.

O Arpoardor estava clássico e estávamos de férias naquele inverno de 1981. A gente era moleque e o crowd era insuportável.

 

Tínhamos que ser os primeiros a chegar, valia a pena – 15 ou 20 minutos sozinhos naquelas esquerdas que escorriam do Pontal rendiam mais do que ficar disputando o resto do dia com aquela cabeçada.

 

Ainda mais quando se tem 14 anos de idade no meio de uma porrada de marmanjos.

Para evitar perder tempo no busão da madrugada, dormíamos na casa do Bernardinho, que ficava a três quadras do Arpex. Aliás, nem dormíamos. A ansiedade para surfar aquelas ondas não permitia.

 

Como a noite demorava a passar, Shao, irmão mais velho do Bernardo, desligava todas as luzes do apartamento e a molecada virava a noite jogando ovos nos carros que paravam na esquina para azarar os travecos.

Embora hoje veja como uma atitude lamentável, confesso que a gente se divertia. Ganhava quem acertasse nos braços ou nas janelas dos carros daqueles sujeitos fenomenais que paravam atrás de um love.

Às vezes a polícia batia no prédio, mas o porteiro, nosso camarada e sacana como todo bom cearense, fazia cara de sonso dizendo que no prédio só moravam velhinhos inofensivos.

Numa dessas memoráveis jornadas, já cansado, saí do Pontal e fiquei na rampa dois pegando as sobras e assistindo aos surfistas profissionais que vinham arrebentado as esquerdas perfeitas.

 

Cauli era sempre um show à parte, mas o que me chamou atenção naquela manhã foi a blitz feita pela equipe Newsplan e suas pranchas com bicos de pato, desenhos geométricos new wave, quatro quilhas e uma espécie de caixa de vidro junto à longarina.

Entraram todos juntos na água. Bocão mais falava e virava a prancha explicando o funcionamento das quatro quilhas, enquanto o restante de sua equipe – formada por Rosaldo Cavalcanti, Ismael Miranda, Luis Gironso e Moisés Levy – arrebentava as ondas.

Aquilo chamou a atenção de todos. A princípio, estávamos desconfiados diante de tanta novidade junta, mas, como os caras estavam andando bem, a invenção causou impacto. O posicionamento das quatro quilhas era idêntico à posição das quatro quilhas usadas por Kelly Slater no ano passado. O bico de pato parecia não fazer muita diferença e a caixa de vidro era apenas estética.

Não sei se eles surfaram com aquelas pranchas antes em outros lugares. Eu era moleque e não conhecia pessoalmente aqueles caras, que já eram surfistas reconhecidos. O que sei é que a partir daquele marcante dia surgiu um debate em várias oficinas de prancha do Rio.

A novidade veio dar na praia exatamente em um momento em que vivíamos um conflito em relação a que prancha usar, principalmente em baterias. As biquilhas eram soltas demais e não tinham a projeção que as recém-inventadas triquilhas proporcionavam. Por outro lado, as trusters ainda eram muito presas em certos mares.

Diante de tal impasse, alguns surfistas passaram a usar triquilhas, enquanto outros se mantiveram fieis às biquilhas, gerando um abismo entre o surfe praticado pelas diferentes facções. Enfrentar um “biquilheiro” no Meio da Barra usando triquilha era considerado suicídio, assim como enfrentar um “triquilheiro” no Quebra-Mar utilizando uma biquilha era derrota na certa.

Tornava-se evidente a necessidade de suprir a lacuna gerada pelo surgimento das triquilhas, que aposentaram as biquilhas, mas ainda deixavam a desejar em ondas mais fracas. Acredito que as criações surgem a partir de necessidades e foi isso que fez acender a lâmpada na cabeça do Boca para criar as quatro quilhas.

Muito tempo depois, não me lembro bem exatamente quando, em meio a tal movimentação surgiu o australiano Glen Winton, apresentando uma quatro quillhas igual às que eram pivô de tantas discussões por aqui. Não acredito que a necessidade vivida por nós também se dava na Austrália.

As triquilhas foram criadas por lá e evoluíram rapidamente, sem o problema que tínhamos aqui com a distância e demora, ou até mesmo falta de informações sobre tal modelo. Aliado ao fato deles terem mais point breaks, o que facilitava a aceitação das trusters e esvaziava a necessidade para a criação das quatro quilhas.

Na verdade, o que aconteceu na época e que gera tanta confusão até hoje se resume ao fato de que não demos credibilidade às quatro quilhas porque ela não tinha sido criada por um gringo. Não acreditávamos que um brasileiro seria capaz de inventar uma prancha. Éramos preconceituosos e olha que incluo neste rol, junto com muita gente de peso que depois ficou menosprezando a novidade nos bastidores das oficinas e campeonatos. Era preciso que as referências viessem de fora, de alguém como um Simon Anderson.

Criticamos também o fato de ele estar querendo inventar a quatro quilhas e o bico de pato no mesmo dia, o que parecia coisa de maluco mesmo. Mas isso não justifica o nosso erro, eis que nos meses que sucederam aquela manhã no Arpex cruzávamos com o Boca em vários picos da cidade surfando com quatro quilhas com bico normal.

Nos anos seguintes, depois que Glen começou a usar e dizer que era boa, como se fosse dele, passamos a aceitar a quatro quilhas. Admitíamos que era do Bocão até porque não dava argumentar contra o tempo, éramos as próprias testemunhas. Porém, o que antes era motivo de desconfiança em termos de performance, passou a fazer parte de nossos quivers, imprescindíveis em ondas complicadas de serem lidas por triquilhas com v’botton. Além do mais, as quatro quilhas eram pranchas muito “pra frente”, úteis aos critérios de julgamento da época que valorizavam extensão de onda.

Em contrapartida, foram raras as aparições de competidores gringos com tais pranchas, o que fez das quatro quilhas, a meu ver, um movimento genuinamente brasileiro para suprir nossos problemas nos dias de ondas pequenas em beach breaks.

Entretanto, assim que os critérios de competição passaram a exigir um surfe mais base e top, uma linha mais vertical, e a criação de Simon Anderson a chegar com mais eficiência, as quatro quilhas começaram a perder força. Não adiantava mais surfar pra frente sem verticalizar. Extensão de onda, felizmente, passou a ser irrelevante.

A evolução das pranchas sempre esteve muito ligada aos critérios de julgamento. A criação do Boca foi, posteriormente, aliada à transição de tais critérios, fundamental para provocar uma maior evolução das triquilhas. Os shapers passaram a trabalhar mais os fundos das pranchas. Em suma, foram equilibrando a curva de fundo com a diminuição do v’botton e passaram a fazer fundos mais flat.

Nesta direção, foram desenvolvendo os fundos com concave (double, triple, etc), algo que, acredito, mesmo sendo pouco falado, foi o passo mais marcante para a evolução das pranchas e a formação de um surfe mais moderno, que se faz nos dias de hoje.

Esta combinação de novas tecnologias expôs o quanto as triquilhas ainda estariam aptas a evoluir, não apenas em relação aos fundos concave, mas também no tocante aos dome decks, quedas de borda, tamanhos de quilha, curvas de fundo, etc. Ficando as monoquilhas, biquilhas e quadriquilhas, até mesmo nos long e funboards, fadadas às suas próprias limitações.

Hoje, sinceramente, não consigo enxergar a volta das quatro quilhas da maneira que vêm sendo usadas no tour. Considero Kelly Slater o melhor surfista do mundo. Suas cavadas são animais. Seu surfe é resultado justamente da evolução das triquilhas. Sua velocidade vem de sua projeção, de suas cavadas. Não entendo como pode buscar inspiração nos surfistas de aéreo da Califórnia, que obtêm velocidade tirando peso. Surfam levinho, sem projeção e sem pressão.

Acho que o mundo do surfe está intimidado. Ninguém quer questionar o Careca, inclusive pelos inversos motivos que questionamos o Boca no passado. Será que ele está na direção certa? Não vi até agora qualquer sintoma de modernidade no surfe apresentado por ele com sua quatro quilhas. Como mero espectador, não engoli aquilo, confesso que foi triste vê-lo em Trestles e na final em Pipeline surfando em uma prancha sem bico que mais parecia uma tampa de privada.

Gostaria de ler opiniões de pessoas que realmente entendem e trabalham com o assunto, de shapers. As quatro quilhas estão dando certo nas fishs e em outros tipos de pranchas, mas será que vai dar certo na nossa “formula 1”, no Tour, desta forma?

Por fim, admito aqui, talvez em nome de uma geração, os erros e preconceitos que cometemos no passado, para que a geração atual e as futuras não venham a repetir tais erros. Espero ter contribuído para elucidar o assunto. Não tenho dúvidas de que o Bocão foi o inventor das quatro quilhas e me sinto à vontade aqui, no Waves, para questionar a performance destas pranchas.

Aproveito também, para pedir desculpas por minhas molecagens com a galera fenomenal que adora, até hoje, um love. Fazer o que, né?