Leitura de Onda

Larguem as réguas

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Nazaré, em Portugal, é cenário de muitas polêmicas no big surf. Foto: Divulgação.
 

Certa vez, há 12 anos, queria fazer uma matéria sobre a difícil aferição do tamanho das ondas gigantes. Era o início, lembro, à época, de uma expedição chamada Billabong Odissey, de busca à mítica onda de 100 pés, que acabou originando o prêmio XXL.

Naquele momento, quando o grande mercado dava seus primeiros passos no enorme potencial das ondas gigantes, a polêmica sobre o tamanho das bombas já estava no ar.

A mensuração, claro, é uma necessidade do business, não do surfista. Uma régua ao lado da onda facilita a apresentação de um recorde no meio de um Jornal Nacional, na manchete de um grande periódico ou mesmo no papo de bar entre leigos.

Ter recordes facilmente identificáveis aumenta sensivelmente o alcance de um feito na água.

Na ocasião da tal matéria que escrevi para um jornal do Rio, ouvi o pesquisador Luiz Velho, que à época coordenava um laboratório de visão computacional, o Visgraf, do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa).

Qual não foi minha surpresa ao saber que, sim, nos tempos idos de 2002 já havia uma alternativa tecnológica para a aferição de ondas disponível nos centros de pesquisa. Seria algo semelhante ao recurso do tira-teima, hoje largamente utilizado pelas tevês em transmissões de futebol.

“É complicado, porque a onda não tem forma definida, é dinâmica e não é sólida. Mas há saídas possíveis com a visão computacional. Com câmeras posicionadas em ângulos diferentes, poderíamos obter várias imagens em perspectiva e, através dos recursos do computador, medir uma onda”, explicou, à época da matéria, Luiz Velho.

Bill Sharp, que tocava o projeto Billabong Odissey, na época, avaliava, há 12 anos, a possibilidade de medir ondas gigantes com o apoio do Global Position System (GPS), tecnologia hoje popularizada.

“O GPS, preso ao surfista, mediria a altitude a partir da crista até a base da onda. Tentamos também um leitor ótico que usaria raio laser”, disse, na ocasião, Sharp.

Hoje, ele está à frente do Billabong XXL, maior prêmio de ondas gigantes do mundo, que ainda não encontrou um sistema de medição imune a polêmicas. Jamais saberemos se, de fato, não há tecnologia confiável ou se é mais confortável trabalhar com mecanismos imprecisos, como acontece deliberadamente, por exemplo, no futebol, com árbitros sujeitos a erros crassos.

Uma das polêmicas surgiu esta semana, quando Felipe “Gordo” Cesarano escreveu uma emocionada carta desabafando seus sentimentos sobre o maior dia da história do Canhão de Nazaré, quando Burle surfou a onda que vem sendo considerada a maior da história.

O texto foi publicado depois da exibição de um novo vídeo, filmado e editado por Jorge Leal e Polvo, sobre a inesquecível performance de um grupo de surfistas brasileiros – Carlos Burle, Gordo, Pedro Scooby e Maya Gabeira – no fatídico 28 de outubro de 2013.

Gordo sustenta que sua onda, surfada no início da manhã, é maior que a de Burle. A imagem, com pouca luz e embaçada pela neblina, não contribui muito para uma comparação, mas de fato trata-se de uma onda gigantesca, com potencial de recorde.

Diferentemente de alguns leitores, que postaram comentários criticando a postura de Gordo, não vejo na carta-desabafo qualquer pecado. Foi sincera. Trata-se, também, de uma reivindicação compreensível, uma vez que, por trás da métrica, há uma profissão em jogo.  

O surfista provavelmente queria expressar sua opinião há muito tempo, mas sentia-se intimidado pela avalanche de mídia em torno da onda de Burle e, sobretudo, pela falta de uma imagem que sustentasse a sua afirmação. Agora, a imagem está aí.

Se eu fosse o Bill Sharp, consultaria o Impa.

De toda essa história, o que me parece cristalino é a necessidade de os surfistas, apenas os surfistas, largarem um pouco de mão a fita métrica. Deixem essa tarefa mundana e nada espiritual para os homens do mercado, que precisam de números e manchetes.

Parece não haver nada mais valioso nessa história que o sentimento de parceria gerado nos quatros surfistas depois de viverem, juntos – e reforço essa palavra, juntos – uma inesquecível experiência de limite humano nas maiores ondas do mundo.  

Num mundo ideal, seria justo premiar o grupo. Nenhum deles chegaria lá sozinho.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".