Leitura de Onda

O contraditório head judge

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Um cursinho de vez em quando pode ser uma boa ferramenta para a evolução do julgamento no surf. Foto: Reprodução.

Uma importante figura está no centro das discussões recentes envolvendo julgamento da ASP: o head-judge. Sua figura é um remédio para o pavor da ASP por “spreads” (diferenças entre as notas de juízes), como se isso fosse um problema para o esporte. 

 

O atual diretor de provas da ISA, Marcos Bukão, tem décadas de palanque no circuito mundial. Conhece, de perto, os vícios e virtudes do esporte. E, por conta de toda a polêmica recente, decidiu me escrever uma corajosa carta e liberar sua publicação, na íntegra. O texto discute o que Bukão chama de “essa entidade contraditória chamada head judge”. Vale a pena ler:

 

Bom dia, Tulio

 

Não sou de escrever em fóruns de sites ou de ficar dando opiniões em situações polêmicas.

Assim como não me empolgo nem me envolvo mais nessas discussões.

 

Digamos que já estou me sentindo velho e cansado para falar sobre assuntos que, como diria o Cazuza, são “um museu de grandes novidades”.

 

Portanto, deixemos os famosos 8,43 para lá, assim como análises psicológico/esportivas sobre a reação de Medina.

 

Por outro lado, quando li sua matéria, um ponto me chamou a atenção como se estivesse sublinhado com um marcador de texto.

 

Você abordou uma questão visceral no nosso esporte: o papel do head judge.

 

Eu passei o último um quarto de século da minha vida em palanques de campeonato de surf, e, como bom observador, sempre achei intrigante essa entidade contraditória chamada head judge.

 

Vejo alguns paradoxos e algumas obviedades nesta função. Vamos exercitar a capacidade de divagar…

 

Ponto de partida: Embora o julgamento de surf tenha seus critérios pré-definidos, é algo que é e sempre será subjetivo.

 

Essa é a razão pela qual se utiliza mais de um juiz, a razão pela qual  se corta a maior nota e a menor nota e a razão pela qual, em princípio e teoricamente, os juízes ficam separados e devem dar notas individualmente.

 

Percebe-se claramente, com isso, que em sua própria essência o julgamento de surf é algo que espera e encara (ou pelo menos deveria) que possa haver uma diferença de notas e de opinião entre os árbitros.

 

Porém, ao longo dos anos foi se criando uma cultura de que a bateria bem julgada é a bateria que não apresentou um spread entre as notas.

 

Criaram-se verdades e mitos do tipo: “Bateria bem julgada não pode ter mais de meio ponto ou, no máximo, um ponto de spread”.

 

Sem querer ser arrogante ou dono da verdade, eu tenho uma particular certeza de que, se a gente colocar os cinco melhores juízes do mundo para julgar uma bateria super equilibrada e de alto nível, sem um head judge e totalmente incomunicáveis entre si, spreads que seriam considerados assustadores irão aparecer.

 

Digo mais: se a bateria for de quatro atletas, a chance de classificações diferentes entre os juízes é muito mais real do que se imagina.

 

E qual seria a grande tragédia se isso ocorresse?

 

Na minha opinião, nem haveria grande tragédia nisso.

 

Mas não… Diferença entre notas ou de opinião entre juízes é um pecado capital que nunca foi bem digerido no meio do surf.

 

Olhando de fora do aquário, dá a impressão que a criação da figura do head judge foi um processo de autodefesa.

 

“Ah, vocês querem notas sem spread e num patamar quase unânime? OK, nós daremos isso a vocês.”

 

E puf! Surgiu o head judge.

 

Por favor, veja que não estou julgando a validade ou não do head Judge, e muito menos opinando se ele vai controlar um julgamento em direção ao céu ou inferno.

 

Quem sou eu para isso…

 

Apenas descrevo um cenário que para mim é muito claro.

 

Chegam a ser curiosas algumas reações pós-bateria.

 

Já escutei inúmeras vezes a frase: “O head judge atuou sobre os juízes e, desta maneira, influenciou ou eventualmente mudou um resultado.”

 

Da mesma maneira, inúmeras vezes escutei atletas que checaram papeletas com, por exemplo, notas indo do 6,5 ao 8,0 para a mesma onda, bradarem revoltados :

 

“Onde estava o head judge que deixou isso acontecer?”

 

Interessante o nosso esporte.

 

Forte abraço.

 

 

Tulio Brandão é jornalista, colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou nove anos no Globo como setorista de meio ambiente e outros três anos no Jornal do Brasil, onde cobriu surf e outros esportes de prancha. Atuou ainda como gerente de Sustentabilidade da Approach Comunicação. Na redação, ganhou dois prêmios Esso, um Grande Prêmio CNT e um Prêmio Abrelpe.


 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".