Leitura de Onda

O cerebral

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Kelly Slater, o cerebral. Foto: © ASP / Rowland.

Kelly Slater reina dentro d´água, e ainda não descobriram um modo de pará-lo em dias inspirados. Antes que o texto vire outra oração em homenagem ao cara, preciso ser honesto com meus sete leitores: o homem de Krypton não me encheu os olhos na onda de Trestles.

Não quero dizer que ele não mereceu o título, não é isso. Mas falta o tal índice de novidade: o Slater melhora a cada ano, é um gênio incomparável, o melhor surfista que a humanidade já produziu, mas seu surf já foi visto e revisto 1001 vezes.

Se eu tivesse que pagar ingresso para ver surfistas em ação, talvez eu não escolhesse o monstro atual dos quase dez títulos mundiais. Já que a situação é hipotética mesmo, eu voltaria no tempo para ver o Slater da segunda metade da década de 90, insinuante e, na época, totalmente imprevisível. Hoje, arriscaria meu cascalho para ver Dane Reynolds.

Digo que ainda é um risco, porque ele pode presentear o público pagante com uma atuação sem precedentes ou perder pateticamente para si mesmo, como aconteceu na semifinal contra Bede Durbidge. Dane foi a minha aposta furada em Trestles.

Taj Burrow já teria despachado Dane nas quartas não fosse o apagão de ondas. O australiano precisava de um mísero 6 e não conseguiu. Aliás, Taj vinha muito bem em Trestles. Seu surf veloz, sobre a água, se encaixa naquela onda perfeita, mas sem muita força.

Jordy Smith perdeu a liderança para Slater. Parou nas quartas, eliminado pela maquininha de caça-pontos Bede Durbidge, que foi até a final. Aliás, o australiano que sobrevive fora do mainstream das grandes marcas de surfwear (a Fox é uma gigante de outro esporte, o motocross) também surfou bem em Trestles. Foi quase sempre previsível, mas impecável.

Jadson e Mineiro perderam para o mesmo adversário: o cérebro. Na hora, pareceu apenas que escolheram as ondas erradas, mas o posicionamento na bateria é uma demanda que exige uma calma estratégica. Normalmente, os dois não têm problemas nessa seara. Jadson, afoito, ainda caiu da prancha. Queria resolver o duelo com o Damien Hobgood só no ar. Perdeu.

É aí que entra o gênio. Slater executa todo o cardápio de manobras exigido pela ASP muito bem. Tem carisma. E, no meio de tantos excelentes surfistas, talvez o mais importante: é um sujeito absurdamente inteligente, estratégico, cerebral.

No meio do evento, ao notar que suas ondas não estavam sendo bem julgadas, decidiu se reunir com três head judges para entender os critérios de julgamento que estavam sendo utilizados no evento, enquanto via reprises de ondas dele mesmo, de Dane Reynolds, de Owen Right e de Jordy Smith. Os surfistas para comparação foram escolhidos a dedo.

Ele descobriu, depois de ver as notas e relacioná-las às imagens, que os juízes estavam pontuando ondas com manobras na face aberta da onda (fora do crítico) combinadas com uma manobra aérea ou tirando a rabeta na junção. Seguiu as regras, usou o seu repertório mágico e neutralizou os adversários, com uma inteligência de Velociraptor.

Após  a vitória, quando perguntado sobre o décimo título iminente, respondeu: “Ainda tenho muito trabalho pela frente”. Ele sabe exatamente o que fazer para chegar lá.

 

Tulio Brandão é colunista do site Waves, da Fluir e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".