Leitura de Onda

Nocaute

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Para Tulio Brandão, em forma e dono de uma competitividade que intimida adversários, Gabriel Medina é, sim, um candidato real ao título mundial de 2014. Foto: © ASP / Kirstin
 

Gabriel Medina nasceu para a elite com mágicos e funcionais aéreos de rotação, equilíbrio, força e muito talento. Massacrava adversários sem dó, impondo sucessivas combinações mesmo em surfistas de ponta. Ignorava currículo, fama, medalhas.

Levava todos à lona, sem clemência.

Ninguém faz isso impunemente, em nenhum esporte. Em nome da carreira dos grandes surfistas e do compreensível resgate das linhas originais do surfe, a ASP recuou, quase como se dissesse: ˜ei, esse golpe é baixo, não vale˜.

Enquanto isso, no ringue, um ansioso Medina lutava também contra seus próprios monstros. O primeiro deles foi o natural excesso de confiança gerado pelo início avassalador e, por tabela, o drama dos favoritos precoces: a obrigação de vencer muito cedo. O segundo – e, talvez, mais importante obstáculo – foi o conjunto de contusões enfrentado pelo atleta.

Desta forma, as pedras pararam Medina nas duas outras apresentações em Snapper. Em 2012, ele perdeu para si mesmo, e, ano passado, para uma contusão.

O tempo e a adversidade foram, também, catalisadores de seu amadurecimento. Recuperado, Medina provou mais uma vez ter características comuns a super atletas. Uma delas é uma inabalável força interior, que lhe permite voltar ao topo após grandes tombos.

Com esse espírito, o brasileiro entrou no ringue de Snappers. Estava pronto para jogar dentro das velhas regras do esporte. Se os juízes não queriam aéreos, Medina foi ao palco mostrar como se executa a mais convencional das linhas de backside.

Não é a primeira vez que ele vence desta forma. Em outra final contra Joel Parkinson, três anos atrás, em San Francisco, também ganhou com marteladas de backside. Mas, desta vez, a estratégia era nítida, uma visível mudança de tática no jogo. Medina passou longe do ar.

Decidiu aplicar batidas retas, rasgadas potentes e floaters largos – grandes manobras, que poderiam ser executadas por surfistas em outras décadas. São eternas, definem o esporte.

Os goofies Miguel Pupo e Owen Wright provavelmente apresentaram um surfe mais limpo, suave, mas as sapatadas de Medina eram mais intimidadoras. Pareciam murros, de tão fortes.

Miguel vale um parêntese. Surfou muito, parou apenas diante do inspiradíssimo Joel Parkinson. Tenho admiração pela história e pelo excelente trabalho de shaper do pai de Miguel, Wagner Pupo. Levou o filho ao WCT sobre suas pranchas – e isso não é pouco.

Mas o garoto acertou ao escolher, nas ondas de Snapper, o equipamento de um shaper australiano. Seu surfe foi sensivelmente redimensionado. Nos beach breaks, expertise de Wagner, Miguel deve voltar às boas OHP. Vida que segue.

De volta a Medina, para chegar ao título, o garoto não tinha escolha a não ser derrubar os ídolos locais, um a um, no ringue deles, a emblemática Snapper Rocks. Primeiro, foi Mick Fanning. O garoto de ouro brasileiro carimbou a faixa do campeão mundial duas vezes. Depois, a vítima foi Taj Burrow, sempre um excelente surfista em Snapper, que deve estar desesperado pela derrota no jogo convencional.

E, por último e mais difícil, Joel Parkinson, um esteta das ondas, um verdadeiro local do pico. O aussie dropou atrás da pedra, no negativo, tirou tubo e executou seu conhecido desenho na onda, com belas rasgadas e cutbacks. Surfou muito.

Mas Medina tinha a seu lado, além do incrível talento natural, uma renovada potência, estratégia digna de um enxadrista e, claro, a benção que só os campeões costumam ter.

Nas três últimas baterias, lhe foi dada a chance de virar nos minutos finais. Mas, como disse Fanning, não adianta apenas a onda. É preciso ter sangue frio e espírito vencedor para executar manobras que forcem os juízes a dar uma nota que eliminará um surfista local.

Deram brecha para o garoto de Maresias ganhar logo na primeira etapa. Em forma e dono de uma competitividade que intimida adversários, Medina é, sim, um candidato real ao título mundial de 2014. E, se não for este ano, nem o mais crítico saxão é capaz de duvidar que há um caneco reservado com seu nome em algum lugar do futuro.

Antes disso, no entanto, ele terá que lutar contra muitos surfistas e alguns monstros, em ringues bem piores que o de Snapper. Afinal, quem é líder, está na mira do mundo.

Um bom exemplo é o de Kelly Slater, o eterno líder do esporte. Adriano de Souza, que vale o último parêntese, aprendeu de alguma forma a intimidá-lo, a neutralizar a sua força. Atropelou o americano, pelo menos em baterias do WCT, pela sexta vez consecutiva. Mostrou, na primeira etapa, um surfe afiadíssimo. Parece estar pronto, no auge da carreira.

A irritação do americano após a derrota é um sinal claro de que a temporada de 2014, por inúmeras razões, será daquelas inesquecíveis para o esporte. 

Agora, fica a expectativa para a próxima etapa, na remota Margaret River.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".