Meu amigo, um sorriso e eu também

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Encontro de gerações: Felipe e Antonio, aprendendo a parafinar a prancha. Será que ele só vai gostar de aéreos? . Foto: Arquivo Pessoal.
Outro dia fui surfar com um amigo de 19. Exatos 20 anos a menos que eu. Instintivamente, comecei a observá-lo. Que diferença haveria entre nós? Além, obviamente, dos meus quilos a mais e cabelos a menos, da minha prancha maior e do short dele, quase caindo, meia bunda de fora.

 

Enquanto andávamos em direção à praia, ele querendo correr porque o mar tinha aumentado e as ondas estavam se acertando e eu querendo conversar, saborear o momento e estudar as correntes para identificar o melho pico, vimos um cara mandar um batida vertical de backside numa direita da série.

 

“Parece o Cauli nos bons tempos”. “Quem?”. Meu jovem amigo não sabia quem é Cauli Rodrigues. Expliquei: “Foi um dos três melhores surfistas brasileiros no começo dos anos 80. Praticamente revolucionou o surf de backside que se fazia no Brasil”. “Ah, é? Vamos apostar uma corridinha até o mar?”.

 

Sem esperar minha resposta, disparou pela areia e se jogou n’água em frente ao pico, onde as ondas quebravam sem refresco.

 

Varar a arrebentação. Eu adorava fazer isso. Medir forças com o mar. Superá-lo. Agora meu prazer é outro.

 

Gosto de andar até o canto da praia. No caminho, vou olhando as ondas enquanto minha cabeça viaja. Memórias de dias clássicos, amigos que o surf me deu, pranchas que eu não esqueço, viagens. Controlo a respiração, oxigenando a carcaça. Observo a cena na areia.

 

Vejo um surfista novato com medo de encarar o mar que subiu. O medo está nos olhos. Cordinha amarrada no pé imobilizado pela insegurança. Cobiço duas gatinhas lindas que esperam os namorados saírem do mar. Passo por pai e filho, que admiram juntos as ondas. Em todo o caminho, galeras de surfistas se somando ao crowd que nunca pára de aumentar.

 

No canto da praia, entro sem dificuldades, aproveitando a correnteza que joga diretamente lá fora. Vou remando até  pico, garimpando uma ondinha aqui, outra ali. Como todo o dinossauro do surf, meu interesse maior é a rainha da série. Foco nela.

Vejo meu amigo. Ele se posicionou na seção intermediária, onde a quantidade de ondas é maior. Eu remo minha 7’2″ para o outside, poucos metros abaixo da galera dos pranchões. Quero a onda mais bonita.

 

Até minha primeira rainha vir, meu amigo já pegara meia dúzia de ondas. Reparo que ele quer soltar uns aéreos. Dessa meia dúzia, metade ele desperdiçou tentando voar sobre o lip. Na última, acertou o pé e executou decolagem e aterrissagem com perfeição.

Quando a minha veio, manobrei com cuidado para aproveitar ao máximo a linda parede de energia líquida. Só me permiti ousar um pouco mais quando ela entrou no inside, quase na areia.

 

Duas horas depois, saímos juntos do mar. Eu, acabado. Ele: “Vou mandar um sanduíche e voltar daqui uma hora. Você viu meu aéreo?”. “Vi. Também vi quantas ondas você desperdiçou até conseguir a manobra”. “É. Mas é aéreo que interessa. O resto é manobra de velho”.
 
Vinte anos são um abismo. Quando eu tinha a idade dele, nem o floater havia sido inventado. Agora a moda é decolar. Não sei, não quero, não me interesso por essa manobra, que para mim é coisa de skate. Sou mais cutback, batida e, acima de tudo, tubos.
 
Apesar de tantos sinais externos apontando diferenças entre nós dois, lá estávamos juntos, andando de volta para casa.

 

Estaria a minha cabeça mais feita? Ou estaria a dele? “Sabe, Felipe, quero surfar até ficar bem velhinho. Sei lá, até uns 80 anos.” Só pude dizer “eu também”. E sorrimos um para o outro.