Leitura de Onda

Memória de surfista

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A memória do surfista eternizada em livros de surf. Foto: Arquivo Pessoal.

A fama de desmemoriado é injusta. Sacanagem de amigo sem prancha. 

 

Surfista tem memória de pescador. A sobrevivência da espécie depende da lembrança viva da última onda, ou da última onda boa. Sem ela, o homem de prancha é incapaz de encarar o mundo real, o escritório, a gravata, o cartão de ponto.

 

Sem ela, não sobrevive aos piores dias de surfe. O que o mantém no mar é a esperança de uma série surpreendente que salve o dia.

 

Para o surfista, a onda é como o peixe grande do pescador. O tubo pode não ter sido tão profundo assim. O buraco daquele drop insano não estava cavado. Talvez tenha faltado remada. A tal virada no crítico não entraria nem nos primeiros vídeos de Taylor Steele. 

 

Mas nada disso importa: o surfista volta ao outside, olhos molhados de encantamento, e manda para o amigo sentado a seu lado: “você viu?”

 

Com o passar dos dias, a onda marcada na memória ganha exageros dignos da arte barroca. Aquele tubo, na lembrança fluída, ganha uma definição precisa de tempo. “Fiquei pelo menos cinco segundos entocado, num mar cristalino”, repete o surfista, para si mesmo. 

 

Ele não mente, apenas fantasia. O prazer de uma onda é capaz de criar na memória do surfista uma marca eterna, em relevo. A marca muitas vezes ganha vida, vira uma lembrança em forma de apêndice, e se desenvolve sem qualquer controle de seu dono. Quanto maior a distância para a última onda boa, mais ela se torna especial.

 

O que imprime a marca eterna, o que dá vida à memória, na verdade, são os sentidos. O surfe tem uma carga sensorial tão intensa que é capaz de confundir a razão e lhe dar sinais trocados. Os cinco sentidos são estimulados ao mesmo tempo: nem o cérebro de Pitágoras resistiria a um impulso sensorial tão intenso. 

 

Todo mundo é capaz de se lembrar de um amigo conhecido por exagerar nas fantasias da onda. Mas a prova de que o cara não quer necessariamente se vangloriar dos feitos é que ele frequentemente extrapola o tal exagero para as condições do mar. A expressão “altas ondas” já foi usada para mares infames, na conta da fantasia.

 

No fundo, lá no fundo do tubo, em maior ou menor grau, todos nós, surfistas, temos memória de pescador. Algumas vezes, um surfista se esforça para não exagerar numa descrição. Mas o relato comedido da experiência, em vez de se aproximar da verdade, muitas vezes é entendido como um ato de falsa modéstia. O surfe não é o mesmo sem a fantasia.

 

A intensidade da memória de um dia de surfe pode comprometer descrições mais precisas, mas é um ingrediente fascinante para contadores de história. No futuro, com a existência de cada vez mais homens de prancha aficionados pelas letras, não me surpreenderia se fosse grande também o número de escritores que acordam cedo para se inspirar nas ondas. Quem está dentro d’água, sabe: até a experiência de um surfista comum daria um bom livro. 


Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".