De Volta Pro Futuro

Itacaré dos anos 70 e 80

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A primeira vez que fui, ou pelo menos tentei ir a Itacaré, foi em julho de 1976, numa viagem de Brasília que fiz acampando até Salvador, com os amigos Armando, Marcelo Diniz e Fernando Mesquita.

Logo que saímos da BR-101 rumo a Itacaré, na região de Ubaitaba, sentimos de cara a dificuldade que seria aquela estrada, pois além de lamacenta, era cheia de buracos. Depois de rodar uns 25 quilômetros do total de cem, fomos obrigados a desistir devido à precariedade do terreno, e dali voltamos e seguimos para Salvador, onde acampamos no Jardim de Alah. Que triste escolha.
 
No fim de janeiro de 1978, vindo de uma longa viagem que se iniciou em São Paulo, donde seguimos até Belém do Pará e viemos descendo todo o litoral Norte e Nordeste, resolvemos enfim explorar Itacaré. Vindo de Salvador, passamos o ferry boat de Itaparica ainda à noite e clareando o dia numa manhã chuvosa. Estávamos muito cansados, e ali estacionados no acostamento BR-101, na região de Ubaitaba, ficamos pensando se valia a pena ou não arriscar, pois na verdade nunca ouvimos falar nada sobre Itacaré, a não ser no mapa.

Decidimos, depois de um debate no carro, pegar a estrada, se é que aquilo poderia ser chamado de estrada. Logo no início, notamos que seria arriscado danificar o carro, pois além de muita costela no terreno, a trilha possuia áreas extremamente lamascentas, que lembrava um rally do Camel Trophy, mas dessa vez seguimos em frente sem desistências.
 
Quando chegamos a Taboquinhas, um povoado a 50 quilômetros da BR, sentimos um alento, pois pensávamos ter chegado na tal Itacaré, mas que nada, ainda faltava muito chão. Enfim conseguimos concluir os 100 quilômetros e chegamos numa pequena cidade nativa, à beira da desembocadura do rio das Contas, numa manhã nublada, por volta das oito horas. Parecia que chegamos a alguma aldeia de algum país africano, ao estilo Serra Leoa, ou algum país exótico.

 

A maioria da população era negra, os trajes e costumes realmente lembravam o continente de onde vieram a maioria dos antepassados daquela gente. O cheiro eu me lembro até hoje, uma mistura de maresia com temperos e frutas, pois logo na chegada da povoado, ficava o mercado onde se aglutinavam grande parte das pessoas.

Participávamos da viagem eu, meu irmão Alberto, Ronaldo Clark Kent e Fernando Mesquita, e logo que chegamos à muvuquinha, saímos do veículo e formos observados por todos, que nos olhavam como se fôssemos seres de outro planeta. Compramos algo para comer e perguntamos para alguns nativos onde era a praia. Eles nos indicaram uma pequena estradinha de terra e por ali seguimos rapidamente.

No meio de uma mata, e mais lama, seguimos essa estrada que culminou em uma praia chamada Tiririca. Quando paramos o carro de frente ao mar, olhamos atônitos. Foi um dos maiores choques de minha vida surfística: as ondas estavam over head, a água clara, quase azulada (o que é raro ali), o mar estava liso que nem uma gelatina e as ondas rodavam para os dois lados, tubos e mais tubos, sem qualquer pessoa na praia. Cena de filme “Endless Summer”.

Havia na praia um senhor chamado Seu Salvador que era visto pelas pessoas como um lobisomem. Lendas à parte, ele foi o nosso amigo durante esse período. A nossa alegria foi tanta, porque apostamos no incógnito, e depois de mais de 40 dias de viagem e cansados, estávamos sendo recompensados com ondas de sonho, num cenário tropical envolvido por muita floresta, calor, sem crowd. De tanta ansiedade, não conseguíamos nem tirar as pranchas de cima da capota, e entre cada gesto para retirar os elásticos no rack, nos abraçávamos e pulávamos que nem doidos varridos. Seu Salvador observava aquilo e não devia ter entendido nada.

 

Partimos para água, quente e transparente, deixando toda aquela bagunça na Kombi, e nos lançamos no outside, onde pudemos sentir a potência daquelas ondas e pegar muitos tubos secos, fora o visual do lugar, um paraíso. Sonho dos sonhos. A cada canudo que eu pegava e saia, gritos ecoavam, gritos de surfistas guerreiros, na conquista de um novo spot, que anos mais tarde se tornaria um dos mais conhecidos de todo o país.

Ficamos em Itacaré por uma semana surfando sozinhos, sem algum surfista na água, ou fora, sendo os únicos turistas em Itacaré, isso em pleno verão. Dormíamos dentro do carro na Tiririca, debaixo de uma construção velha e abandonada, e comíamos por ali mesmo cozinhando, ou em casa de nativos. Vivemos ali dias mágicos, com pessoas mágicas, ondas mágicas, vida simples, tubos quadrados, num local que o mundo do surfe não conhecia.

?Seguimos para Ilhéus depois dessa semana de sonhos e ali encontramos os nossos grandes amigos, os irmãos Argolo. Falamos das ondas de Itacaré e resolvemos voltar de novo para apresentar o pico a eles. Paulistas apresentando secret baiano aos baianos, é mole?

Voltamos dessa vez por outro caminho, via Uruçuca, donde saía uma outra estrada, muito pior que a primeira, e que cortava por dentro da selva, mas a Kombi e o motorista já estavam tarimbados para mais esse desafio que foi superado ao chegar novamente a Itacaré. Já era fevereiro e estávamos em pleno Carnaval, e de novo nós ali, os únicos surfistas e turistas da cidadezinha.

Descobrimos depois que havia mais um surfista na cidade que ficava na segunda praia, depois da Tiririca, com a sua mulher vendendo artesanatos. Tratava-se de Ronaldo Fadul, um baiano de Salvador que surfava muito bem e ficou nosso amigo. Ele também ficou espantado com a gente, e lembro de termos surfado muitas ondas naquele período. Outro surfista de Illhéus, um veterano chamado Washington Soledade, já frequentava o pico nessa época, e pudemos em outra ocasião conhecê-lo. Posso dizer que foi um dos carnavais mais tops de toda a minha vida.

No mesmo ano, no inverno, retornei a Itacaré com o meu irmão, uma namorada e o Clark Kent, numa viagem que fizemos a Maceió. Pegamos altas ondas de novo, vivemos o sonho da Tiririca. Colocamos a Kombi na velha garagem, de frente à praia, e ali estabelecemos nosso lar. Como era julho, conhecemos outra Itacaré, clima mais frio, ondas maiores e mais potentes com a água mais escura, devido às cheias do rio de Contas. Já havia alguns surfistas de Jequié no pico, mas absolutamente sem crowd, pois eram surfistas que ficavam 10 minutos na água.

Na volta dessa trip, decidimos seguir por uma outra estrada, a estrada costeira, muito esburacada e cheia de declives e lama. Foi uma luta, mas conseguimos chegar depois de muito custo em Serra Grande, onde surfamos até o fim da tarde. Para não sofrer mais naqueles buracos, resolvemos ir pela areia até  Ilhéus, pela praia do Norte, que tem muitos quilômetros. Já era noite e chovia tempestuosamente, e a cada rio que cruzávamos, eu achava que não sairíamos dali. Graças a Deus chegamos a Ilhéus depois de uma longa viagem de seis horas que hoje não se gasta mais que uma hora.

Voltei dois anos depois, início dos anos 80, só que de ônibus, em julho de 82, com André Paglioli e meu irmão. Partimos da rodoviária do Tietê, em São Paulo, pegamos três trechos – o primeiro de São Paulo a Ilhéus em 36 horas, depois de Ilhéus a Uruçuca, e o terceiro de Uruçuca a Itacaré. Nesse trecho, o ônibus era precário, os passageiros muito humildes, e os buracos faziam aquele ônibus parecer uma máquina de lavar roupas.

E o pior é que estava rolando o jogo do Brasil com a Itália, que perdemos por 3 x 2. Era Copa do Mundo e os passageiros acharam que a gente era da Itália, eles nunca viram um turista. Tudo pelo radinho de pilha. O clima no bus era de tristeza pela derrota, mas a hora em que saí e coloquei os pés em Itacaré, fiquei tão feliz por voltar à nossa Àfrica particular, e nada no mundo poderia ser melhor. Até esqueci da derrota do Brasil.

Dessa vez não tínhamos a komboza para dormir, então ficamos hospedados em um quartinho, no fundo da casa da dona Heloína, próximo ao rio de Contas, e ali ficamos quase um mês, tomando banho frio e andando todas as manhãs da cidade até a Tiririca, sempre com uma parada para comer um mingau de tapioca no caminho. Surfamos picos diferentes como os Corais, Boca do Barbudo, Prainha, Ribeira, São José e outra praia depois do rio de Contas, no caminho de Barra Grande.

 

Para a nossa surpresa, chegou o primeiro crowd na cidade. Eram surfistas do Guarujá, o Xan e  Murilo Brandi, Luizinho, Beto Mattos e o Rony Figueiredo. O baiano Ronaldo Fadul já morava na cidade, não vendia mais artesanato e tinha comprado terras, acho que virou fazendeiro, e ele já era o verdadeiro local do pico. Na verdade ele era de Salvador. Os verdadeiros locais nativos surgiram e ficaram nossos grandes amigos, o Caneta e o Luciano. Com eles exploramos várias praias ali e pegamos boas ondas juntos.

Como ficamos um bom tempo, pudemos conhecer melhor a região, explorar os rio de Contas, os manguezais com seus caranguejos vermelhos, as fazendas de cacau, comer maçã de coco, mel de cacau, andar por costeiras e florestas, conviver com os nativos, e quase comprei um terreninho por lá. Nada era melhor do que ficar de boa, deixando o tempo passar de frente à orla do rio de Contas no fim de tarde, na maré baixa, observando a criançada pegando siri, as peladas dos pescadores nativos, todo aquele caleidoscópio afro-brasileiro.
 
Depois dessa viagem, retornamos algumas vezes ainda nos anos 80, uma com o Jojó de Olivença e os grandes irmãos Argolo, quando eles nos apresentaram  Itacarezinho, Jeribucaçu e Engenhoca; outra já nos anos 90, com o Alfio da Hang Loose, e a última em 2007, quando fui de carro até lá com a minha mulher e os meus filhos, mas infelizmente já era outra cidade, com dezenas de pousadas, hotéis, estrangeiros de toda a parte, e muito, mas muito crowd na água.

Bruno Alves
Economista e repórter fotográfico de povos, natureza, cultura, esportes e aventura. Foi um dos fundadores da premiada revista “Fluir”, onde atuou como editor de fotografia e principal fotógrafo de surfe. Foi também um dos criadores da revista “Caminhos da Terra”, nos anos 80. Ainda nessa década, participou da criação, foi editor e fotógrafo das revistas “Skatin” e “Bodyboarding”. Ao longo de sua carreira viajou por mais de 50 países, diversos territórios e concessões.