Leitura de Onda

Heróis do mundo real

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Leo Neves, um trabalhador do oceano, herói do mundo real. Foto: Aleko Stergiou.

O surfista profissional carrega nos ombros o pobre clichê da vida boa: onda o ano inteiro, fartura de gatas, pranchas novas e dinheiro no bolso para viver na praia. Burocratas enjaulados em corporações piram ao comparar suas vidas sem cor com a de um andante dos mares.

 

Os caras costumam ficar putos e, ignorantes, chamam surfista de burro. De malandro, boa vida.

 

Duvido que um desses tenha se arriscado a pegar um ônibus com um moleque chamado Leonardo Neves, que saía de Brás de Pina, no subúrbio do Rio, e sacudia por mais de 30 quilômetros com a prancha na mão para chegar à praia da Barra, onde treinava.

 

Léo é um trabalhador. E ai do desgraçado que o chamar de vagabundo. Passou parte da vida dentro de um ônibus para ter a mesma chance de surfar de um garoto bem nascido. Quando não dava para ir, treinava as manobras no skate, longe da praia mesmo

 

Foi bicampeão brasileiro, chegou à elite do surf mundial e foi muitas vezes mal julgado, mas ainda assim continua vivo nas competições. Viu o amigo Raoni Monteiro ressuscitar depois de quase ser enterrado vivo, e agora quer seguir o mesmo caminho. Sabe que pode ressurgir.

 

Na história dos heróis de carne e osso, também tem espaço para Alexandre Almeida, o Dadazinho. Vivia na Cidade de Deus de Zé Pequeno e Dadinho, mas não sucumbiu. Atropelou os perrengues da vida, dormiu na lixeira de um prédio sem perder a dignidade e, persistente, venceu: foi bicampeão estadual e chegou a competir em etapas brasileiras do velho WCT.

 

Lembro de um tubão do Dadazinho na única etapa brasileira do WCT realizada até hoje em Saquarema. O mar estava grande, e a nota 9,7 valeu, sem dúvida, o esforço de uma vida.

 

Vidas mais duras ainda tiveram os surfistas do Titanzinho, no Ceará. Expostos à miséria, à falta de formação, sem qualquer perspectiva e de cara para a violência e a droga, souberam driblar o quase inevitável para brilhar com as pranchas. Palmas para Fábio Silva, um viva à Tita Tavares e, agora, força total para a explosão titânica de talento Pablo Paulino.

 

Há heróis de carne e osso também fora do Brasil. O que dizer do australiano Bede Durbidge? Que o cara nasceu num país rico e se mantém com certo conforto no circuito mundial há anos? Não, não é justo. Bede é um excelente surfista, esteve pelo menos nos últimos cinco anos entre os seis primeiros do mundo, mas jamais foi lembrado pelas grandes corporações de surf e por boa parte da mídia especializada.

 

Vê-lo ganhando, para alguns, é como ver a vitória de um time pequeno, mediano e sem torcida. Para mim, é ver a vitória da obstinação. Em 2007, Bede, sem patrocínio, pegou US$ 50 mil dólares no banco e hipotecou a própria casa para poder seguir no circuito mundial.

 

Foi premiado por acreditar quando ninguém acreditava: terminou o ano como vencedor do Pipe Masters, da Tríplice Coroa Havaiana e terminou o ano como quinto melhor do mundo.

 

Mereceu entrar para uma lista – que é repleta de brasileiros – de heróis de carne e osso, cujos adversários são bem mais duros que Lex Luthor.

 

Tulio Brandão é colunista do site Waves, da Fluir e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".