Vitória da preservação

Grande e a Prainha

0

Prainha abriga boas ondas em área de preservação ambiental. Foto: Fábio Minduim / Blackwater.com.br.

Carlos Eduardo Cardoso é o nome da criança. Grande, como era conhecido pela galera devido à sua estatura, uns 2 metros e alguma coisa, tinha o hábito de pegar sua moto, colocar a prancha no rack e sair de sua casa da Zona Sul para surfar na Prainha.

 

Não utilizava seu tamanho para intimidar, seu carisma e sorriso sempre no rosto o tornaram um cara conhecido na galera do surfe carioca. Trafegava com facilidade entre as diversas etnias existentes no Rio dos anos 80. Era respeitado pelos surfistas competidores, convidado para as festas dos bacanas, amigo dos lutadores e parceiro da galera da Zona Norte a Zona Sul.

 

Frequentador da praia em frente à barraca do Pepê, quando ainda era localizada no Pepino (canto direito de São Conrado), Grande viveu, assim como toda a sua geração, a mudança da barraca do Pepê para a Barra, o que resultou em significativa mudança no cenário praiano carioca. Antes era todo mundo embolado no Pepino, gostosas, surfistas e voadores, uma confusão maravilhosa.

 

O pico da imprevisibilidade, todo mundo ia sem saber se ia dar onda, térmica, namoro ou amizade. Com a mudança, o Pepino continuou sendo o point do Vôo Livre, a Barra, em frente à nova barraca do Pepê passou a ser a praia das gostosas e a Prainha o novo point do surfe. Tal mudança tirou o Pepino de cena e chamou a atenção da Prainha para toda a cidade. O surfe cresceu muito nos anos 80 com o surgimento de campeonatos amadores e profissionais ligados à nova imagem dos surfistas que passaram a ser conhecidos como esportistas e empresários da geração saúde.

 

Diante deste clima, a Prainha era a nova vedete e Grande era um líder por acaso, sem saber e sem fazer força. Não era competidor, lutador ou ecologista. Sem rótulos, era ele mesmo. Zelava por um ambiente agradável e repudiava atitudes black trunks. Também já não se sentia mais total em seu sonho de metal e para a nossa sorte, dos nossos filhos, netos, bisnetos e de quem mais vier, resolveu vender a sua moto.

 

O filho do dono de uma das maiores construtoras do Rio se interessou. Jamais imaginou que a venda de sua moto ia mudar a geografia e por que não dizer, a história da cidade. Grande pegou o seu ex-sonho de metal e foi até o escritório da construtora que ficava no Leblon. Estava ansioso, cliente bom. O cara é cheio da grana e vai pagar a vista.

 

“Sobe aí, Grande, quero ver a moto, mas antes deixa eu te mostrar uma coisa”, disse o empresário ao se debruçar em uma maquete com oito prédios, hotel, shopping center e condomínio de casas à beira de uma praia pequena cercada de montanhas e mata atlântica. Cantando vitória, no melhor estilo executivo de Harvard que desconhece o básico do futebol, em que o jogo só acaba quando termina.

 

Então perguntou: “E aí Grande, não está reconhecendo este lugar?”. Grande franzia a testa, olhava com atenção e balançava a cabeça negativamente. Sua ingenuidade não o permitia reconhecer a tão evidente maquete. Olhava, olhava, mas não conseguia enxergar. Dizem que o coração nessas horas nos protege e bloqueia a visão.

“Porra, Grande, presta atenção, é a sua filha, a Prainha!”.

 

A porrada foi forte! Grande ficou perplexo, estarrecido, incrédulo. O projeto era a menina dos olhos da construtora. Já estava tudo encaminhado. Mostrar aquela maquete pro Grande. O que? Logo pro Grande? Imagino que deve ter sido uma cena cômica de tão assustadora. Aquele cara gigante com a sua desproporcional cabeçinha olhando pra baixo, boquiaberto, vendo aquele brinquedinho assassino do empresário, pronto para transformar a praia dos seus sonhos em sucursal do inferno.

 

Este cara não sabia o tamanho da merda que tinha acabado de se meter. Sabe aquela estória? Meu querido, você mexeu com o cara errado! Grande seria capaz de ir nadando até Brasília pegar o presidente pela orelha para fazer o empresário engolir aquela maquete sabe-se lá por onde. Sem exagero, foi quase isto que ele fez. 

 

Mobilizou todo mundo na Prainha, no Pepino, na praia do Pepê, na noitada, na Zona Norte, Sul, Ilha, Baixada. Explicava o perigo do projeto, marcava protestos e passeatas, convidava, convocava, intimava, dava esporro. Ai de quem não fosse. Ele tinha credibilidade para fazer isto.

 

Procurou o Partido Verde, bateu na mesa do então vereador Alfredo Sirkis. “Escuta aqui meu irmão, você é verde mesmo ou é só pose?”. Pronto, Sirkis e o Partido Verde compraram o barulho. O circo estava armado. Protestos, passeatas e várias inserções na mídia. O mesmo interesse que atraiu a especulação imobiliária agora catapultava matérias para a grande imprensa.

 

Jovens surfistas engajados politicamente lutam pela preservação do meio ambiente, essa era a manchete do momento em vários jornais. Aproveitando a onda, Sirkis foi rápido e eficiente. Elaborou projeto de lei que transformava a Prainha em área de preservação ambiental – APA, o que, acreditem, foi apresentado, incluído em pauta e aprovado na Câmara dos Vereadores no mesmo dia.

 

Incrédulos, os interessados no empreendimento foram fazer lobby com o então prefeito Marcello Alencar para que vetasse o projeto. Não teve jeito, o prefeito não cedeu e promulgou o projeto de autoria de Sirkis, dando origem a Lei nº 1.534/90. Se a Prainha caísse, Grumari seria ou não a próxima vítima? E ai, mudou ou não a geografia, história, sociologia, ufologia e sei lá mais o que da nossa Cidade? Shopping center, hotel, condomínio, se até hoje o saneamento básico no Recreio é precário, imagine como seria na Prainha? Esquece! Melhor nem imaginar!

 

Parece que foi obra do destino. Só de pensar que fomos salvos pelo acaso, pela venda de uma moto, me dá arrepios. Mas calma, espera! Não foi apenas pelo acaso. Poderia a tal da moto ter sido vendida por uma pessoa pequena, que ia tirar proveito da situação para levar vantagem. O pelego, geralmente um tipinho simpático, malandro, parece que está do seu lado, mas por trás está armando. No sapatinho, monta uma ONG, uma associação, vira presidente, leva um apartamentinho na jogada, tudo para esfriar a situação enquanto o projeto é definitivamente aprovado.

 

Ora, mas aqui a conversa foi outra, coisa de gente grande. Esta suposta figurinha tão comum no nosso país ficou de fora, bem como, também ficou faltando nesta história outro personagem bastante presente e de longa data, geralmente parceiro do suposto malandrinho citado acima, o político corrupto e ineficiente. Figurinha repugnante que só pensa no seu próprio bolso, ou melhor, para ser mais atual, bolso, cueca, meia, mala, vestimentas….

 

Pois é, mas desta vez tudo foi diferente. Que felicidade! Não só pela preservação da Prainha, mas pelo fato de sabermos que as coisas podem funcionar. Que pode dar certo.

 

Janeiro de 2010! Vamos comemorar os vinte anos de vigência da Lei 1.534/90, celebrar a beleza e a preservação de uma praia. Comemorar o fato de ainda existirem políticos com convicções. Comemorar a vitória de uma geração, a vitória dos surfistas, a vitória de uma sociedade consciente e bem representada. Vamos continuar acreditando que este país está repleto de pessoas “Grandes” e que essas pessoas vão prevalecer. Feliz 2010!! 

 

Clique aqui para assistir o vídeo no YouTube.

 

Leia mais

 

Viagem por outras ondas

 

No futuro seremos gringos