Leitura de Onda

Força aos Irons

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Morte de Andy Irons traz perplexidade a todos que amam o surf. Foto: © ASP / Kirstin.

Kauai, anos 80. “Eu lembro da primeira onda que surfei. Fui para a esquerda, para a direita, para a esquerda, e a onda jamais quebrou. Pensei na hora: foi a experiência mais legal da minha vida. Nunca me esquecerei dessa onda, até o dia em que eu morrer (…).”

 

Pipeline, 2003. Andy tem 25 anos, e encara Kelly Slater na final de Pipeline. Em jogo, muito mais que um título. Antes da bateria, ouve um desconcertante “eu te amo” do americano. Responde na água, em cima da prancha. Ganha o campeonato e arranca a fórceps de Kelly o título de 2003 e um pouco da arrogância do americano.

 

Pipeline, 2006. Três anos se passaram até que Andy, a esta altura um tricampeão com dois amargos vices nas costas, reencontra o velho Kelly nas águas repuxadas de Pipeline. Slater prepara o roteiro de sua vingança – na final de entrega das faixas, massacraria seu rival – e começa atropelando com duas notas altas. Andy parece perdido, mas apenas prepara o bote mortal: vira o bico para Pipeline numa, para Backdoor na outra e marca insuperáveis 19,87 em 20 pontos possíveis, devolvendo a humilhante combinação que sofrera minutos antes.

 

Foi um dos momentos mais marcantes da história do surf de competição. Saiu da água carregado pelos amigos havaianos. Dia desses uma revista especializada perguntou qual era a imagem que ele tinha de Kelly: “Ele
é apenas mais um humano”.

 

O homem que não tinha medo do quase deus sofreu algumas derrotas para ele mesmo. Passou por um período difícil, afastado do circuito mundial, com problemas pessoais.

 

Voltou este ano aparentemente recuperado, em forma, auxiliado pelo técnico do Joel Parkinson e feliz com pequenas conquistas. A um amigo da ASP, disse certo dia de 2010: “Ficaria feliz se eu pudesse apenas
voltar a vencer uma etapa.” Para quem já tinha levado 19 canecos para casa, aquela não era uma meta, digamos, ambiciosa.

Tahiti, 2010. Não foi o mar que Andy pediu a Deus, mas os tubos estavam lá. E seu velho rival, o quase deus Kelly, também. A vigésima e última vitória da vida foi bela. Parecia – aos olhos de um torcedor – um
sinal inequívoco de que o havaiano tinha renascido.

 

Nesta semana, Andy Irons morreu estupidamente num quarto do hotel Grand Hyatt do aeroporto local. Estava a caminho de casa, enfraquecido por uma dengue hemorrágica que o impediu de competir em Porto Rico. Em
Dallas, muito doente, teria sido obrigado a sair do avião que seguia para o Hawaii e permanecer na escala por uma noite. Seu corpo foi encontrado na manhã seguinte no quarto do hotel. A autópsia só vai determinar a causa da morte em 60 dias. Mas, agora, só o que importa é que Andy está morto.

 

Ele não conseguiu ficar em Porto Rico para ver o aparentemente inevitável décimo título mundial do maior de todos os tempos, Kelly Slater. Andy gostava mais de vencê-lo que de reverenciá-lo. É simbólico que o havaiano tenha nos deixado – num corte seco e abrupto – momentos antes da consagração final de seu maior rival.

 

Consolo: a morte trágica e a vida heróica no surf catapultam Andy para além da eternidade. Recebi a notícia da morte de Andy de um amigo, por torpedo. Confesso que fiquei paralisado na frente das minhas filhas por alguns minutos, tentando entender o significado daquilo. Elas me perguntaram o que estava havendo, não encontrei meios de responder.

 

Ainda não consegui digerir a morte prematura de um ídolo, aos 32 anos, quando ele parecia recuperado do pior momento da vida. Andy era um artista genial, um escultor de arcos suaves nas ondas. O surf deve a
ele o fim dos excessos de estilo, do maneirismo. Como o jazz modal: em poucos movimentos, beirava a perfeição. Um poder de síntese que revela uma inteligência fora da curva.  Ele deu ao surf a chance de ser limpo, suave.

 

Por muito tempo, Andy foi ainda uma máquina infalível de competição: multiplicava-se ao vestir a lycra de competição. Mas esse era só um complemento.

 

Jornalistas, às vezes, não conseguem se equilibrar em palavras diante de uma tragédia, sobretudo quando se sentem atingidos pela história. A morte de Andy é uma perda irreparável para quem ama o surf. E não adianta fingir: sou um deles.

A primeira onda de Andy Irons, aquela da infância, quebrou. Tudo o que eu desejo é que ele surfe-a para sempre. Força para toda a família Irons.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".