Arquipélago do Marajó

Nova pororoca na área

0

No início de 2014, uma notícia caiu como uma bomba sobre os surfistas de maré do Brasil: o Rio Araguari (AP), conhecido como o Hawaii das pororocas, havia secado. A equipe da ABRASPO (Associação Brasileira de Surf na Pororoca) só acreditou quando foi lá conferir.

Foi um ano difícil! Além de não termos mais aquela onda maravilhosa, tínhamos de nos contentar em surfar uma marola bem pequena em outro rio. Foi muito decepcionante, sobretudo pelo fato de estarmos conduzindo uma expedição de surfistas cariocas que ficaram frustrados com o que viram. E não era pra menos.

Contudo, no início deste ano, a situação, que já era ruim, conseguiu ficar ainda pior. A divulgação de uma notícia em caráter nacional conseguiu se espalhar por todo o país, chegando inclusive ao exterior. A equivocada informação de que a pororoca brasileira havia acabado. De repente, da noite para o dia, quando se falava em pororoca, a pergunta que se seguia era: “Mas a pororoca não acabou?

Não, a pororoca não acabou!

E apesar de ainda existirem dezenas (e muito provavelmente centenas) de pororocas espalhadas pelos estados do Amapá, Pará e Maranhão, o que se ouvia nas ruas era que não existia mais pororoca. Algo precisava ser feito para desfazer esse equívoco. Para isso, Noélio Sobrinho, presidente da ABRASPO, convocou um seleto grupo de experientes caçadores de pororocas e deu início a uma ambiciosa empreitada, o desbravamento de uma nova fronteira para a pororoca brasileira: as ondas de maré do Rio Amazonas.

Nascia ali o projeto Expedição Pororoca do Marajó 2015 – Chaves – Pará, que levaria os caçadores de pororoca da ABRASPO de volta às suas origens, desbravando lugares inóspitos e explorando regiões pouco conhecidas, como há 17 anos, quando tudo começou.

Para a missão, foram escalados os surfistas especialistas em pororocas Adilton Mariano (CE), sete vezes campeão brasileiro de surf na pororoca, e Marcelo Bibita (CE), primeiro recordista de permanência em uma onda, além dos paraenses Gilvandro Júnior, pioneiro do surf na pororoca, e Nayson. Para dar apoio aos atletas, uma equipe de peso também foi escalada: Chico Pinheiro, piloto dos mais experientes em operações em pororocas, e Cica, comandante com vasta experiência em navegação pelos rios da região amazônica.

À frente de toda operação, o paraense Noélio Sobrinho, com a difícil missão de coordenar toda a ação e, além de provar para o Brasil que a pororoca continua viva, apresentar uma nova onda capaz de fazer frente à extinta onda do Rio Araguari (AP).

A missão teve início no dia 26, no porto de Macapá, capital do Amapá, única entre todas as capitais brasileiras banhada pelo Rio Amazonas. Ali, o grupo se reuniu e partiu para o município de Chaves (PA), no arquipélago do Marajó. Lá os participantes do grupo foram recebidos como verdadeiros heróis pelos habitantes do município e pela prefeita Solange Lobato, que não mediu esforços para apoiar o projeto. Foi lá que o pajé da ABRASPO, Marcelo Bibita, realizou o ritual Auêra-Auara, pedindo permissão aos antigos espíritos da floresta para que pudéssemos adentrar na mata e concretizar nossa importante missão. E sob um eclipse lunar e ao som de músicas tribais e danças tradicionais encenadas pela tribo dos Auêra e por moradores do município de Chaves, a caçada à pororoca marajoara tinha oficialmente iniciado.   

Início

No dia seguinte, a adrenalina saltava aos olhos de todos os integrantes da operação, que logo cedo já estavam de pé. Por volta das 7 da manhã, a caçada efetivamente teve início. Naquele instante todas as brincadeiras, piadas ou qualquer indício de descontração cessaram. Era chegada a hora de enfrentar o desconhecido e todos estavam conscientes do risco que representava estar ali. À medida que nos afastávamos do navio base, o Amazonas ia assumindo seu lugar de rio com o maior volume de água do planeta, até que não sabíamos mais o que era rio ou oceano. Não tardou para que ela, a pororoca, aparecesse no horizonte com seu som gutural e estrondoso, anunciando que a onda da mata estava se aproximando.

À primeira vista, parecia que a onda viria pequena. Mas, à medida em que o barulho aumentava, o turbilhão que mais parecia um tsunami também crescia à nossa frente. O primeiro a se aventurar foi Adilton Mariano, que, mesmo com a vasta experiência acumulada em anos de surf na pororoca, claramente fazia um grande esforço pra domar sua prancha e se manter de pé sobre a onda. Na sequência foi a vez de Nayson tentar domar a fera que tinha quase 2 metros de pura fúria. Apesar de ter conseguido surfar a onda, o paraense acabou sendo tragado pela força da pororoca depois de alguns minutos negociando com a violenta espuma que castigava as margens do Amazonas, arrancando suas árvores como os búfalos arrancam a grama dos campos marajoaras. O mesmo aconteceu a Gilvandro. Os próximos a tentar a sorte naquela avalanche de água cor de chocolate foram eu, George Noronha, e Noélio Sobrinho. O último foi Marcelo Bibita, que apesar de ter esperado bastante até que a onda se acalmasse, também teve de trabalhar muito para domar seu longboard.

Assim se encerrava o primeiro dia da operação, onde as bancadas foram mapeadas e os melhores lugares para o surf, identificados. Naquele momento acreditávamos que a parte mais difícil da operação tinha passado, pois, sobretudo na região do Marajó, a pororoca está sempre mudando devido o fenômeno do aluvião, que modifica continuamente o curso do rio pelo depósito e retirada de sedimentos provocados pela influência das marés no curso do rio. Devido a esse fenômeno uma pororoca nunca é igual a outra. Mas, agora, sabíamos onde as melhores partes da onda estavam. Teoricamente, era só se posicionar nessas bancadas e “correr pro abraço”.

Sendo assim, no segundo dia a operação deveria ser bem mais tranquila já que sabíamos mais ou menos onde estavam as melhores partes da onda. Contudo, a palavra tranquilidade definitivamente não combina com pororoca e mais uma vez a operação foi tensa.

Contudo, foi nesse dia que Noélio pôde mostrar toda a experiência acumulada em mais de 150 expedições à pororoca surfando a maior de todas as sessões da onda, na parte mais perigosa para o apoio das lanchas, pois, vinham várias pororocas de diferentes lugares do rio, justificando o nome daquele local como o Ninho das Pororocas. Mais uma vez a pororoca de Chaves expôs nossa fragilidade e nos mostrou como somos pequenos diante da magnitude do fenômeno, nos dando um verdadeiro “sacode” em seu turbilhão que em algumas partes do rio chegava a atingir quase 2 metros de altura.

Mas ainda nos restava o terceiro dia, o último ataque no qual todos fariam suas apostas de onde seria a melhor parte da onda, a parede limpa, o sonho de todo caçador de pororoca. Nesse dia, a pororoca surgiu no horizonte por volta das 9 horas da manhã, dando início à caçada. Como de costume, Adilton foi o primeiro a se lançar na onda, seguido por Nayson.

Nos dias anteriores, aquele mesmo local era onde havíamos avistado a melhor parede de onda. Não perdi tempo e também me atirei no rio junto com eles. Bibita veio logo atrás. O que não contávamos era que o Amazonas implacavelmente nos arremessaria para a margem. Em alguns minutos, o que era céu começou a se transformar em inferno bem diante de nossos olhos. Cada vez mais o rio nos lançava para sua margem. Até aí tudo bem, se há cerca de 500m à frente não existisse um emaranhado de troncos esperando para empalar qualquer coisa que se atrevesse a encarar a fúria do rio.

Quando olhei para o lado, Adilton e Nayson já tentavam fugir da margem remando para o meio do rio, o que rapidamente se mostrou uma decisão errada, pois, o rio corria em direção à margem onde estavam os troncos. Quando olhei novamente, Adilton e Nayson estavam agarrados ao barranco. Foi quando tomei a decisão de remar para a margem também. Eu tinha pouquíssimo tempo e, ir naquela direção, significava me aproximar cada vez mais dos troncos. Eu já estava cansado e ofegante de tanto remar, mas não podia nem pensar em desistir, afinal, não havia outra alternativa – tinha de dar certo.

Passei velozmente por Adilton que gritava pra eu remar mais forte. A cada instante os troncos ficavam mais próximos. A água estava negra como borra de café e meu maior medo era que já houvessem troncos ali onde eu estava passando. Aí seria o fim, pois, certamente ficaria preso pela cordinha aos troncos submersos. Remei com todas as minhas forças e graças à Deus, consegui chegar à margem mais ou menos 100 metros antes dos troncos, que, tão logo a pororoca passou, foram cobertos pelas águas do rio sumindo de nossas vistas.

Após alguns minutos vi que Bibita também tinha passado pelo mesmo sufoco, contudo, havia conseguido sair antes de nós. Foram os momentos mais assustadores que já vivi em uma pororoca. Não apenas pelo que aconteceu, mas pelo que poderia ter acontecido caso algum de nós fosse inexperiente ao ponto de não conseguir antever e evitar o pior.

“Foi a situação mais complicada que já passei em uma pororoca. Nunca havia passado por nada parecido. A pororoca aqui é muito violenta e perigosa. Pra ter uma ideia, onde saí tinham um búfalo morto. Você tem noção do que é preciso pra matar um búfalo? Pois é! Por isso, batizei aquela bancada como Búfalo Morto”, declarou Adilton.

Para Noélio Sobrinho, a força e violência do fenômeno na região do Marajó é a maior prova de que a pororoca nunca irá acabar na Amazônia e já faz planos para a próxima expedição:

“A operação foi um sucesso. Apesar dos sustos, todos saíram ilesos, mas, sabemos que isso só aconteceu porque contávamos com algumas das pessoas mais experientes e preparadas para cumprir essa missão. Essa época não é a melhor para o surf aqui no Marajó. Os ribeirinhos dizem que na época das chuvas, entre janeiro e abril, a pororoca fica lizinha como um azeite. Contudo, precisávamos fazer um mapeamento prévio para voltarmos no ano que vem na temporada de pouco vento, o principal fator que influencia na formação das ondas perfeitas e principalmente, para mostrar para o Brasil que a pororoca não acabou”, declarou Noélio.

Depois de tudo o que vimos e vivemos, ficamos com a certeza de ter descoberto uma pororoca igual ou talvez até melhor que o do Rio Araguari, com potencial para quebra de recordes de tempo e distância percorrida em uma onda e, principalmente, com condições de receber surfistas do mundo todo devido à infraestrutura oferecida pelo município marajoara de Chaves e pela Fazenda Sta. Terezinha. E que essa pororoca não será extinta pela intervenção do homem na natureza, porque secar o Rio Amazonas será bem mais difícil, apesar de que, em se tratando de destruição da natureza, para o ser humano nada é impossível.

Agradecimentos especiais
Não podemos deixar de agradecer à importante intervenção do senador paraense Flexa Ribeiro, sem a qual essa operação não teria sido realizada. Sabemos que nosso país está mergulhado em uma grave crise política e econômica e mesmo com todas as dificuldades, o senador teve a sensibilidade de enxergar a importância de se mostrar para o Brasil que, além da pororoca não ter acabado, o Pará está pronto para apresentar para todo o país a Indonésia das pororocas, no exuberante arquipélado do Marajó, formado por mais de duas mil ilhas, a nova fronteira da pororoca brasileira.

A ABRASPO faz questão de registrar os seus sinceros agradecimentos ao apoio do distinto Senador paraense Flexa Ribeiro, sem o qual essa expedição não teria se realizado.

Sobre a Pororoca
A palavra pororoca vem da onomatopeia guarani poroc-poroc, que significa grande estrondo, produzido pelo barulho ocasionado pela onda quebrando no rio, derrubando as árvores e destruindo sua margem.

No ano de 2014, o Rio Araguari, conhecido mundialmente como o Hawaii das pororocas, teve o curso de seu leito afetado irreversivelmente pela ação do homem. Hidrelétricas, canais abertos pela introdução dos búfalos em um ecossistema frágil, desvios no curso do rio além de outras intervenções humanas, fizeram com que a pororoca, que durante anos atraiu surfistas vindos de vários lugares do mundo, deixasse de existir, causando uma perda incalculável para a economia da região e para o meio ambiente.

Contudo, a pororoca não acabou e nunca poderia acabar, pois o fenômeno que ocorre nos estados do Amapá, Pará e Maranhão continua a acontecer com maior intensidade sempre nas luas cheia e nova.   

Até hoje não se sabe exatamente como a pororoca se forma. O que se tem de certeza é que ela decorre da diferença de amplitude entre as marés seca e cheia, que no Norte do país é bem grande, e ainda há quem afirme que o fenômeno é provocado pelo movimento de rotação do Planeta.   

A expedição
A Expedição Pororoca do Marajó 2015 – Chaves – Pará, contou com o patrocínio do Governo do Estado do Pará e Prefeitura do Município de Chaves. Apoio: SEBRAE, FIEPA, FAEPA, SENAR/Pará e Gabinete do Senador Flexa Ribeiro. Realização: ABRASPO.