Muitas águas

Do anonimato ao estrelato

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Motaury fez a cabeça com os expressos de Atalaia. Foto: Bruno Alves.
A vida tem seus mistérios e peças. Esta história aconteceu em julho de 1990, eu já morava em Florianópolis desde dezembro de 88. Tinha acabado de cursar publicidade na faculdade Objetivo, da Luis Góes, em São Paulo (na época ainda não era Unip – Universidade Paulista).

 

Após alguns meses trabalhando no estúdio Abril, o maior da América Latina e reduto de grandes nomes da fotografia brasileira, acabei jogando tudo para o alto e fui morar em Floripa, atrás de uma vida “alternativa”.

 

A vida no estúdio me dava uma certa claustrofobia. Entrava pela manhã e saía muitas vezes altas horas da noite, sem saber se estava

O fotógrafo e o amigo Jairo foram convocados para salvar a matéria e não decepcionaram dentro da água. Foto: Bruno Alves.
sol ou chuva, frio ou calor. Tudo tem seu preço, cada escolha, cada caminho. Larguei a cidade grande, família e “sociedade”. Até então, Floripa era uma pacata capital.

 

Logo conheci vários ‘catarinas’, paulistas, gaúchos e cariocas pioneiros na “arte” de viver o surf como estilo de vida integral. Eu não tinha mais duas vidas: a da semana e a do final de semana.

 

Vivia o surf intensamente. Lembro de acordar de madrugada por várias noites de inverno e ir até o Campeche ver o sol nascer redondo, dirigindo já vestido com meu long, botinhas e gorro.

 

A fumaça saía da boca nas manhãs de inverno, de uma boca ávida por ondas perfeitas e solitárias.

Motaury fez a mala nas esquerdas do pico. Foto: Bruno Alves.

Numa destas minhas aventuras, cheguei a dirigir de roupa de borracha os 100 quilômetros que separam Floripa de Itajaí para chegar pela manhã em Atalaia, antes do primeiro raio de sol.

 

Lembro dos nativos chegando e eu ir saindo já cansado de surfar tantas ondas sozinho. O amor tem destas coisas. A gente faz coisas que vão além.

 

Meu grande amigo Bruno Alves, talvez o maior aventureiro que o surf brasileiro já teve, na época no auge de sua carreira como fotógrafo da Fluir, da qual foi fundador e inclusive deu o feliz nome ao veículo, resolveu fazer uma trip para a

Edição 58 da Fluir, com a matéria sobre o pico proibido. Foto: Bruno Alves.
praia de Atalaia: o tesouro proibido!

 

Marcos Bicudo, talentoso repórter cuidaria do texto, e Saulo Lyra, dos bons contatos. Eu seria o motorista do Bruno e resolvi convidar o Jairo, do Nordeste, para me acompanhar.

 

Estava um tempo sem fotografar e estava até sem equipamento. Acabei levando minha prancha na esperança de sobrar umas “migalhas”. O swell estava perfeito, o sol maravilhoso e as linhas encostavam naquele molhe de pedras de uma maneira que qualquer surfista que se preze deliraria ao ver a cena.

 

O fotógrafo surfou os expressos de Atalaia até a exaustão. Foto: Bruno Alves.
Aí, começou a se desenhar o que chamo de surpresas da vida. Simplesmente o dia começou a passar e ninguém apareceu para surfar, pois os locais já avisaram que a praia estaria “reservada” para eles, pois a equipe de reportagem da Fluir estaria ali para fotografá-los e somente eles, os “donos do pico”, seriam os astros.

 

A situação foi chegando a tal ponto que o Bruno, desesperado por ver tanta onda perdida e a matéria indo por água abaixo, se dirigiu a mim e ao Jairo e falou: “Corram pra água, a matéria será com vocês!”

 

Peguei minha board e pulei das pedras. O Jairo

A matéria publicada na edição 58 da revista Fluir. Foto: Bruno Alves.

também. Logo apareceram dois locais alternates e simplesmente vivi uma das minhas melhores sessões de surf da vida.

 

Ondas absolutamente perfeitas de 1,5 metros com seções de tubo. Um longo expresso. Dei até uma desconectada da praia, “esquecendo” que estava numa matéria inédita na Fluir.

 

Fiz o melhor que pude, surfei minhas ondas, relembrando os dias em que havia estado ali sozinho nas frias auroras.

 

Foram muitas horas de surf e muitos clicks. Voltando pra Floripa, exausto e dirigindo, o

Motaury em seu momento de estrela principal na revista Fluir. Foto: Reprodução.
Bruno comemorava, pois mesmo que de forma diferente do que havia imaginado, conseguiu fazer a matéria.

 

Estava ainda digerindo tudo aquilo. Vivendo a glória passageira daqueles momentos. Passaram-se algumas semanas e o Bruno me ligou de São Paulo dizendo para eu comprar a revista nas bancas, pois teria uma surpresa. Fui abrindo ansiosamente as páginas da edição número 58, agosto de 1990, da revista Fluir.

 

Para minha surpresa, lá estava eu numa página dupla, expressando meu surf, nas páginas da mais consagrada revista de surf brasileira de todos os tempos.


Por ser fotógrafo de surf, eu bem sabia o que aquilo representava, pois todos atletas que fotografei e também os fotógrafos, sonham com aquele momento.

 

Então, vivi meu momento de maior destaque na minha “carreira” de free surf. Do anonimato ao estrelato. De coadjuvante a ator principal.

 

Deus tem seus presentes e este eu guardo até hoje como uma agradável recordação.