Revista Fluir

Digno de Hollywood

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Na edição 291 da Fluir, de janeiro de 2010, a matéria “Digno de Hollywood”, de Sylvio Mancusi, foi publicada incompleta. Confira abaixo a íntegra da reportagem.

Na ondulação que foi considerada a maior da década no Hawaii, as ondas chegaram aos 50 pés em Jaws, na ilha de Maui. Nosso repórter global Sylvio Mancusi encarou as bombas dentro da água e nos conta como foi esse espetáculo único da natureza. Acidentes, resgates de helicóptero e ondas incríveis surfadas, direto da zona de impacto mais casca do mundo com exclusividade.
 
Já em setembro as primeiras ondulações da temporada “fumavam” em Pipeline com séries no apogeu beirando os 12 pés. Isso já era um aperitivo do que seria esta temporada. Na última semana de novembro os mapas de previsões das ondas atordoaram aqueles ligados no que seria o maior swell de todos os tempos. A maioria dos especialistas em previsão não ousaram definir o exato tamanho que essa ondulação atingiria ao chegar à costa, mas todos afirmavam que haveria destruição e que os surfistas testemunhariam no mínimo o swell da década.

 

Realmente nunca havia visto o Oceano Pacífico inteiro dominado por uma baixa pressão daquela proporção (vide foto). Chamada para o Eddie Aikau em vista e alguns experts palpitando que estaria grande demais para Waimea, ao estilo do swell de 1998 quando rolou o “Eddie no go”, no qual séries fechavam a Baía de ponta a ponta, forçando o organizador George Downing a como ele mesmo disse “preservar a integridade dos competidores”.

Voltando a 2009, os que não estavam na lista do Eddie, liderados pelo big rider Laird Hamilton, focaram no que seria a sessão dos sonhos em Jaws. Cheguei a Maui na manhã do dia 4 de dezembro e no aeroporto encontrei com os big riders brasileiros João Mauricio Jabour e Edison de Paula, que também tinham o mesmo destino.

 

Nos juntamos a Danilo Couto, Koxinha, Jorge Pacelli, Pato, o baiano radicado em Maui, Yuri Soledade e a única surfista que estaria presente no outside, a brasileira Andrea Moller. O noticiário na TV pedia cautela para aqueles com moradia em frente ao mar e anunciavam a maior ondulação da década, alarmando todos os presentes nas ilhas havaianas e nos quatro cantos de Maui. De turistas a moradores, não se falava em outra coisa a não ser uma visita à plantação de abacaxi em frente a Jaws para contemplar o desafio / plasticidade, que só essa onda pode proporcionar.

Rumores falavam sobre o fechamento dos portos e proibição de entradas e saídas de barco. Os surfistas de tow-in foram obrigados a procurar por outros lugares para colocar os jet skis na água. O problema é que nos EUA só podem colocar jet skis na praia, os donos, ou autorizados pelos proprietários das casas de onde está sendo realizada a manobra. E nem todos conheciam alguém com tal descrição. A intensidade da baixa pressão renderia três dias de ondas gigantes na costa de todas as ilhas havaianas. No primeiro dia esperávamos ondas entre 40 a 50 pés.

 

E foi isso que aconteceu. Na primeira luz do dia em Maliko Goat, lugar onde são colocados os jet skis na água, havia uma multidão de jet skis em direção ao pico e tivemos a certeza que o DLNR – autoridade litorânea local – não havia fechado as entradas ao mar. Na estrada em direção à plantação, outra multidão, nunca havia visto tantos turistas fazendo filas de carros em direção ao morro de acesso em frente à onda.

Eu e meu parceiro nessa sessão, o local Robbie Seeger, Andrea Moller e seu parceiro, Adam, optamos por não nos juntarmos a essa primeira sessão do ano, cheia de ânimos exaltados, e fomos checar do penhasco, nos unindo aos turistas, e a cena foi chocante. Em uma série presenciei seis jet skis brigando pela mesma onda e a luta por um lugar ao sol lembrava gladiadores, ou até mesmo o filme Water World, estrelado por Kevin Costner.

 

A ondulação com maior influência de Norte tirou um pouco da potência das ondas, deixando-as mais curtas e com pouca parede. Assistimos poucas boas ondas surfadas, mas o sol no horizonte e uma fraca brisa de terral anunciavam uma hora do almoço e fim de tarde promissores. Dito e feito. Caímos na água em meio a um trânsito de jets no sentido contrário. Com dez anos de experiência no pico, percebi que cerca de metade deste crowd era composta de atletas ainda estreantes no pico: locais, americanos, europeus, argentinos e brasileiros.

Jorge Pacelli e seu parceiro, Daniel Silvagni, que voltavam da sessão com dois colegas de São Paulo, Xan e Ivan Bertazzo, nos deram o boletim. “Viemos logo cedo, mas acho que vai melhorar durante o dia. Só vamos reabastecer os jets, comer algo e voltaremos para a água. Nunca vi um crowd tão grande. “Ao chegarmos ao pico, Yuri Soledade e Pato pegavam boas ondas em sincronia ímpar e logo depois Danilo Couto, Alfredo Villas Boas, Cesinha, Koxinha e Ricardo Amassado engrossaram o time brazuca no outside. Como é bom estar colocando os pés nas alças no canal, sendo rebocado ao fundo, e ver Danilo dropando uma bomba para a esquerda com seu tradicional estilo, marcado por drops atrasados.

Na série seguinte, em minha primeira onda na sessão e com uma prancha desvirginada naquele instante, vejo o bowl de Oeste vindo em minha direção, e a única saída é colocar para dentro do tubo, o qual não abriu e na sequência entrei na famosa “dança da pedra”, como costumamos chamar quando temos que ir buscar as pranchas nas pedras. Esse ritual é tão ou mais perigoso do que o próprio ato de surfar. Seu parceiro lhe joga em um quebra coco com ondas de 1 a 1,5 m em cima de uma bancada de pedras perigosíssima. Com os pés de pato facilitando a rapidez a penetrar na bancada, o segundo passo é conseguir andar rapidamente com os mesmos em cima da bancada, onde o resultado muitas vezes são escorregões dignos das Vídeo Cacetadas do Faustão.

 

A volta é outra história, já com a prancha pesadíssima, cerca de 8 kg nos braços, o equilíbrio debilitado resulta em muitas quedas nas pedras, com as rasteiras das ondas que quebram a cerca de cinco metros de onde se pula na água. Tudo isso regado aos olhares curiosos e torcedores dos turistas empoleirados na montanha. Olhei no relógio antes de pular de volta na água e eram duas da tarde. Muito tempo para ainda surfar com a prancha com o bico, rabeta e quilhas com pancadas das pedras, mas como fui rápido no resgate, ainda tinha condições de surf.

Muitos surfistas não se aventuram em buscá-las nas pedras, uma hora de bateção nas pedras é o suficiente para seu foguete de cerca de US$ 700 se dissipar na costa. Foi ótima a opção de esperar o maior crowd passar e surfar da hora do almoço até o final de tarde. Cerca de oito jet skis dividiram o outside e os brasileiros pegaram altas ondas, esquentando as turbinas para o dia “X”, que seria o dia seguinte.

 

A tal da insônia bateu geral quando conversei com o shaper Jeff Timpone, especializado em Jaws, que faz pranchas para a maioria dos big riders brasileiros como Burle, Eraldo, Yuri, Pato, João Mauricio, eu e mais uma galera. Ele me disse que estava em Oahu em 1969 e viu algumas séries nos outsides de Rocky Point que “contamos cerca de 5 segundos para a crista da onda fazer seu trajeto do topo até a base da onda”, disse ele. “Foi um espetáculo. Creio que amanhã estará assim, você não acha?”, sorriu Jeff.

Mil ligações de curiosos querendo saber como estavam as  condições e a previsão para o dia seguinte, a TV anunciado o swell da década – muitos comparando com a histórica ondulação de 1969, quando Greg Noll surfou o que dizem ter sido a maior onda surfada na remada na história, em Makaha – me fizeram querer que aquela noite passasse rápido e fôssemos logo para a água.

 

Às cinco da manhã levantei e olhei a boia que mede as ondulações há cerca de oito horas da costa da ilha de Oahu e houve uma variação entre 16 a 19 pés. A população hoje tem acesso a que tamanho de ondas teremos na costa. A boia que mede as ondas no oceano envia o tamanho e a intensidade da ondulação, é um serviço público que dispensa comentários com relação à ajuda aos surfistas. Como a ilha de Maui está um pouco mais afastada, somamos mais cerca de quatro horas, totalizando 12 horas de quando bateu na boia. Números à parte, o crowd naquela manhã foi insano.

Diferentemente do dia anterior, com pouca parede pela manhã, as primeiras séries com 50 pés de face bateram na bancada com potencial total, deixando surfistas experientes na flor da adrenalina. Três jet skis e dezenas de pranchas destruídas nas pedras, era o saldo até as 11 da manhã.

 

Koxinha e Edison de Paula não atingiram a parede e foram engolidos por duas esquerdas pesadas. Koxinha disse ter tomado o pior caldo de sua vida. Kai Lenny, de apenas 19 anos, pupilo de Laird Hamilton, pegou o melhor tubo do dia. O número de helicópteros sobrevoando o pico foi recorde. Produções coordenadas por Laird, Ian Walsh e uma marca de energéticos filmaram cada segundo das sessões. Os mesmos helicópteros que no final do dia retiram os jet skis das pedras, em cenas dignas de filme de Hollywood.

O fato é que o crowd foi inexplicável em palavras, para aqueles que disputavam as séries no pico. Novas caras no outside vindas dos quatro cantos do globo, tornaram a sessão complicada. O tow-in hoje foi bem descrito pelo sobrinho de Gerry Lopez, Sean Lopez, mais tarde durante um jantar. “Qualquer um pode pegar numa corda e ser jogado no rabo de uma onda em Jaws, você não precisa de muito talento para se safar no rabo. Por isso esse número crescente de surfistas desconhecidos no outside.

 

Mas como ficam aqueles surfistas de ondas grandes que dedicaram suas vidas ao oceano e que têm o tow-in como a extensão dos limites, disputando ondas com surfistas inexperientes seduzidos pela facilidade que o jet ski proporciona? Palmas para a tecnologia, que hoje mostra claramente os dois lados da moeda. Além de caras como eu que moro de frente para Jaws, minha família inteira desbravou essa onda e não sinto o mínimo respeito pelos novatos e inexperientes no pico. Mas Jaws por si própria acaba colocando os pingos nos ‘ís’,” explica. Eu mesmo ouvi declarações de mais de dois surfistas que depois de terem sentido o peso dos caldos declararam que não surfariam mais ali”, contou Sean.

Em outra conversa com um dos pioneiros do tow-in, Darrick Dorner, em pleno outside, os jet skis dos reais surfistas deveriam ter adesivos com cinco estrelas, dando prioridade nas ondas. “Eu estou muito triste com o que o tow-in se tornou”, disse ele. Os primeiros atletas a colocarem suas pranchas em Jaws foram os windsurfistas, e juntos com os big riders que surfaram na remada ondas gigantes ao redor do mundo,  merecem todo o respeito. Nomes como Dave Kalama, Robby Seeger, Robby Naish, Robert Teritehau e o próprio Laird, que também começou velejando.

 

Eles droparam verdadeiras morras durante anos com seus windsurfs, antes do jet ski entrar em cena. Perderam muitas velas, como Seeger explicou: “Quando começamos a velejar aqui não havia resgate, você perdia sua prancha e tinha que sair nadando por si próprio entre as pedras e ir para casa”. O pupilo dessa geração, o novato towsurfer e windsurfista de 19 anos Kai Lenny, pegou o melhor tubo do dia sendo rebocado por Laird Hamilton.

No final de tarde com o vento já quase maral, Andréa Moller e seu amigo Adam ficaram surfando solitários verdadeiras montanhas em Jaws. Nunca havia visto uma mulher surfando ondas daquelas proporções, ainda mais sozinha no outside, em condições mexidas. Verdadeiras bombas “XXL” dominadas pelo estrógeno e não pela típica testosterona que domina a modalidade.

 

Ao tirarmos os jet skis da água liguei para Oahu para saber as condições do mar e Stephan Figueiredo, Junior Faria e Silvia Nabuco me falaram que Waimea quebrou como há anos não se via. Séries constantes de 25 pés eletrizaram o público na praia e a galera que botava para baixo. Durante aquela manhã a boia cravou 20 a 23 pés, deixando as coisas no limite no fim de tarde da Baía mais famosa de Oahu. Esse auge bateu durante a noite em Maui e os organizadores do Eddie Aikau colocaram seus convidados em expectativa para a realização no dia seguinte.

 

O havaiano Michael Ho, inscrito na primeira bateria do dia, estava em Maui e pegou o último voo de volta a Oahu naquela noite. O terceiro dia do swell amanheceu perfeito em Jaws. Séries mais demoradas ainda atingiam os 50 pés de face e as esquerdas foram as que formaram as ondas mais impressionantes. Dave Rastovich pegou boas ondas nesse dia, o freesurfer mostrou molejo e maturidade e deu boas rabiscadas nas paredes. Rodrigo Resende chegou naquela noite e matou a saudade das sessões históricas já surfadas no pico.

 

Nesse dia nenhum jet ski foi às pedras e o swell foi baixando com o passar do tempo. Mais um mega swell entrou para a história, mas a temporada ainda está no começo. O prazo para o Mormaii Tow-in Pro em Jaws abriu, e as expectativas são as melhores, com influência do El Nino no Oceano Pacífico a todo vapor.