Dias cinzentos

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Jair Bortoleto é autor da exposição Alma Santista, destaque da III Mostra Internacional da Arte e Cultura Surf que rolou em São Paulo. Foto: Herbert Passos Neto.

Depois de ser um dos destaques na III Mostra Internacional de Arte e Cultura Surf, realizada no MIS em São Paulo, o fotógrafo santista Jair Bortoleto descolou um link exclusivo para o Brasil na publicação estrangeira The Shaper’s Tree, que traz fotos de ícones do surf de diversos locais do mundo.

 

Freqüentador do Posto 2, em Santos, ele faz abaixo um relato poético do dia-a-dia no pico e suas impressões sobre o ícone local Cisco Araña, a quem chama de “O Maestro”.

 

 

Os dias pareciam intermináveis naquele inverno em Santos. Os ventos eram fortes e as ondas constantes. O céu era tão azul que ofuscava nossas vistas.

 

O maestro Cisco Araña pelas lentes de Jair Bortoleto. Foto: Jair Bortoleto.

Mesmo que o frio intenso congelasse nossas cabeças, a sensação de estar no mar e sentir o terral em nosso rosto era preciosa.

 

Lembro-me de dias curtos também. Dias em que o céu já não era tão azul e as ondas não eram tão limpas. Mas para nós, eram enormes!

 

O cinza do céu contrastava com o paredão de prédios montados em frente ao mar. Era quase um êxtase assistir aos ícones da nossa história descerem as ondas bem na nossa frente.

 

Em frente ao prédio preto, logo ali ao lado do Posto 2, as ondas eram melhores. Foge do meu conhecimento a razão disso, mas eram. Direitas que eu, na minha pequena estatura e cultura dos primeiros anos de surfista, comparava com as ondas havaianas das revistas.

 

Era o clímax de nosso tempo. Ficávamos felizes quando o Maestro entrava na água e remava diretamente para aquele local. Ele ia passando, remando, cumprimentando a todos e se posicionava no pico. De repente, remava em uma onda enorme e descia reto, como se estivesse esperando a espuma branca alcançá-lo, o que nós sabíamos ser quase impossível.

 

Ele era mais rápido que a onda. Virava arqueado para frente e acertava a crista da onda com uma vontade só vista em filmes. Depois colocava a prancha no trilho e, cruzando os pés como um rei havaiano, ia até o bico da prancha.

 

Ainda lembro dos gritos de todos ao ver aquilo. Lembro da água lambendo as bordas da prancha. Eu passava pela onda lentamente pra ver tudo aquilo de perto. Como se não quisesse esquecer cada segundo daquelas ondas que eternamente estarão gravadas em minha memória.

 

A orquestra do Maestro continua a ensaiar toda vez que tem onda no Posto 2. Ele continua a andar como um rei na prancha. Continua mais rápido que ninguém algum dia poderia pensar em ser. Mas os dias se passaram, nós todos mudamos e envelhecemos de certa maneira.
 
As ondas? As ondas ainda estão lá. Grandes ou pequenas, ainda estão lá.