Leitura de Onda

Conselho de classe

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Ondas da Barra escondem tesouros inesperados. Foto: Gustavo Cabelo.

Por um momento da vida, a escola se transformou num detalhe. Não, eu não escolhera me tornar um vagabundo de praia. Foi o surf que me tomou a alma, sem negociar.

 

 

Passava o dia preso à lembrança da melhor onda da véspera. Reproduzia os melhores arcos do surf com o dedo, na dobra do caderno de geometria. Olhava para o céu todas as noites, e tentava decifrar a direção do vento pela trajetória das nuvens. Não havia o Waves. 

 

Devorava todas as publicações que chegavam até mim – da velha Visual Esportivo à primeira Surfer a pintar na banca do bairro. Mirava, antes do sono, a parede enfeitada por um pôster do Tom Carroll num floater insano. Dormia vendo Surfing´s Super Series no videocassete. 

 

Acordava às 5h30m de sábado sem medo do mar mexido, da água gelada ou do vento Sul cortante. Passava parafina e raspador na véspera. 

 

Surfava para sobreviver. Era como um alimento: eu tinha que aproveitar as oportunidades. Uma ou duas vezes por ano, minha alma de surfista era premiada por um conselho de classe, espécie de reunião de professores para avaliar o ano. Dia livre para o surf no meio da semana.

 

Numa dessas datas premiadas, nos anos 80, liguei para o Andrezinho, amigo de escola. Era uma manhã cinzenta e sem ventos, e partimos para a praia da Barra da Tijuca, onde encontramos um pico vazio – nessa época, ainda havia picos vazios. O mar não passava de 3 pés e, da areia, parecia insosso, sem vida.

 

É aí que se revela a mágica do surf. No outside, havia um tesouro escondido: a água estava quente, o vento não tinha dado as caras e séries suaves escorriam por duas valas perfeitas. Um ponto perdido no meio da Barra, numa fatídica manhã de terça-feira, tornara-se por algumas horas um verdadeiro microcosmo de paraíso.

 

Surfávamos intensamente, conversávamos sobre tudo: ondas, ondas e mais ondas. Um mundo mágico, de encantamento pela vida. No horizonte, muitas ondas e nenhuma preocupação.

 

Daquele dia, surgiu uma grande amizade, que atravessou décadas e evoluiu para a onda das letras. Com ele e outros amigos, tive a sorte de experimentar muitas outras inesquecíveis sessões de surf por todo o planeta.   

 

Hoje, não passo mais parafina na véspera. Acordar cedo virou uma contingência do trabalho. Tenho visto, no DVD, mais Barney e seus Amigos que Second Thoughts. Muitas vezes companho a previsão de ondas para me manter, pelo menos de forma virtual, perto do mar. 

 

Mas, na parede do meu quarto, as curvas intensas de Van Gogh ainda me fazem lembrar os ângulos de uma onda perfeita.  E será sempre assim, enquanto estiver viva em minha memória a lembrança de dias de surf como o eterno conselho de classe.


Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

 

 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".