Leitura de Onda

Bocão e Danilo

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Bruce, Vitor, Ricardo Bocão e Marcos Bocayuva durante evento no Rio. Foto: Fernando Cassini.

A coluna desta semana reverencia dois grandes surfistas brasileiros que estiveram em destaque nos últimos dias: Ricardo Bocão e Danilo Couto. Se os motivos das manchetes são distintos, os aplausos devem ser os mesmos. O surfe brasileiro deve isso a eles.

 

 

Bocão enfrentou o caldo mais assustador da vida de um homem: a perda de um filho. Lembro até hoje de uma frase de Gilberto Gil logo após a morte de um dos seus, Pedro, num acidente de carro: “Perder filhos deveria ser proibido por decreto”. Nada mais verdadeiro.

 

Mas Deus (ou a vida) não trabalha com decretos e, por algum motivo que foge à nossa compreensão mundana, escolhe levar alguns anjinhos para o céu antes da hora.

 

 

Danilo Couto, representante do Brasil na cerimônia de abertura Quiksilver Eddie Aikau. Foto: Bruno Lemos / Lemosimages.com.

Não sou particularmente próximo da família Bocão, mas o falecimento do garoto Vitor me afetou especialmente. Não sei se foi pelo fato de eu ter duas filhas dez anos mais novas, mas exatamente com a mesma diferença de idade de Vitor e Bruce. Não sei se foi porque o pequeno Bocão estudava na mesma escola de minhas filhas. Não sei, ainda, se foi por ter descoberto que Vitor era especial para a Dani, priminha da minha mulher.

 

 

Tudo isso contribuiu, mas o que determinou a dor compartilhada foi o profundo respeito e admiração que tenho por Ricardo Bocão. A deferência não está apenas na conta da invenção da quadriquilha, do talento em ondas grandes (que o levou a ser o primeiro brasileiro convidado para o Eddie Aikau) ou de seu papel como maior comunicador de surf do país.

 

Ricardo Bocão no lendário Píer de Ipanema. Foto: Fedoca Lima.

Bocão conseguiu a proeza de percorrer uma vida inteira dentro do esporte e fiel aos seus princípios. Manteve todas as suas convicções e as defendeu com caráter. Isso ajuda a explicar, perto de completar 60 anos, o seu sucesso como empresário, surfista ativo e um excelente pai de família.

 

Bocão é uma referência positiva, um exemplo do bem, a ser seguido para quem quer passar a vida perto das ondas da maneira certa.

 

Gilberto Gil, anos depois da morte de seu filho, revelou que a música o ajudou muito a superar a perda de Pedro. Desejo de coração que Bocão, a mulher Luciana e o filho Bruce consigam, pela arte das ondas ou por qualquer outro caminho feliz, superar a dor da ausência de Vitor.

 

Danilo Couto desafia o tubo de Teahupoo. Foto: Fred Pompermayer.

De big rider para big rider, o bastão vai para Danilo Couto. Sem fazer alarde, o baiano vem transformando a desgastada imagem do surfista brasileiro no mundo. Dias atrás, ele ganhou o prêmio Milosky Mettle, concedido pela revista americana Surfing ao surfista do mundo que mais encarnasse o espírito de Sion Milosky, falecido recentemente. 

 

Sion era um representante havaiano do verdadeiro espírito “aloha”: combinava coragem e gentileza em doses cavalares. Era um excelente pai de família. Para dentro d’água, levava  humildade, perseverança e espírito fraterno, mesmo nos mais infernais dias do arquipélago. 

 

A vitória de Danilo foi tão merecida que até seus maiores adversários comemoraram o resultado. A família Milosky declarou: “Danilo é um bom homem de família, que mostra respeito a quem está à sua volta e ao esporte. Suas ações são fortes e pelas razões certas”.

 

Bocão e Danilo têm muito mais em comum que ondas grandes nas veias: são ídolos de verdade, do bem, dentro e fora d’água. São figuras como essas que fazem a gente ainda acreditar que o mundo, apesar de todos os contratempos, está no caminho certo.

 

Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".