Leitura de Onda

Aproveite a vida

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Surfistas colocam em prática os conselhos de um pai: aproveitam a vida, vivem intensamente e realizam seus desejos em Hollow Trees, Indonésia. Foto: Sebastian Imizcoz.

Era madrugada no Copa D’or, um hospital aqui do Rio. Meu pai, recém-saído de um coma induzido, dormia em maus lençóis, todo entubado. Eu cumpria a insônia regulamentar a que todo acompanhante tem direito, com o pé para fora do sofazinho ordinário.

 

 

De repente, um urro rasgou o silêncio cirúrgico do hospital. Era meu pai que me chamava, com um olhar estranhamente lúcido. Na tarde anterior, ele exibia um raciocínio confuso, errático. Achava que estava em Minas Gerais, sua terra natal.

 

Mas, naquela madrugada, não. Ele me chamou para perto da cama, segurou o meu braço, olhou no meu olho e disse, com firmeza: 

 

– Aproveite a vida, meu filho. Viva intensamente. Realize seus desejos.

 

Emocionou-se por um momento, provavelmente por lembrar-se de sua própria vida. Ali, naquela maca, estava se recuperando da quase morte, e vivia uma existência ainda frágil. Conseguiu passar pelo pior e, hoje, segue aproveitando, com as ressalvas da idade, a vida.

 

O caminho escolhido, na verdade, é um detalhe particular. Parte dos prazeres prediletos de meu pai não guarda qualquer correspondência com minhas buscas. E, nisso, o surf tem uma participação muito importante. A relação com o mar dá uma dimensão diferente ao homem.  

 

Mas esse conselho eterno de meu pai veio à cabeça nesta quinta, com a notícia da morte de minha tia, a Thereza, aos 60 anos. Apaixonada por música e cinema, ela curtiu enquanto pôde as salas escuras do mundo, adorou bandas de todas as épocas e tinha uma incrível capacidade de reinventar seu gosto sofisticado.

 

Volta e meia, apresentava-me bandas e diretores contemporâneos que eu, um curioso sobrinho de menos de 40, jamais tinha ouvido ou visto.

 

Um ataque cardíaco fulminante interrompeu o seu fluxo de vida. Antes de ser dominado pela tristeza, pensei em celebrar cada momento em que ela conseguiu ser feliz – com a família, com amigos, com as músicas e os filmes, ou melhor, simplesmente com a felicidade no coração.

 

Lembro alguns dos presentes que ela me deu com carinho, entre eles o livro “O homem que amava as mulheres”, cine-romance de François Truffaut baseado no roteiro do filme homônimo, do mesmo autor. 

 

É a história de Bertrand, homem atormentado por uma irresistível vocação para encantar mulheres e encantar-se por elas. Truffaut leva o seu personagem à morte em nome do desejo – ele é atropelado enquanto segue uma mulher e, no hospital, morre ao tentar se aproximar suas mãos das pernas de uma enfermeira.

 

No mundo real, a morte é um dano grande demais para quem persegue o desejo. O caminho é juntar o prazer com o equilíbrio e a dose certa de generosidade com o próximo.

 

Essas experiências aumentam a vontade de estar com pessoas queridas, de curtir minhas filhas, de ler e de ir ao cinema, de viajar o mundo, de observar o mundo, de surfar montanhas nevadas de snowboard e, é claro, de pegar onda, todas as ondas que eu puder, até o fim.

 

 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".