Muitas águas

A vida por alguns fios

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Motaury aprende os passos básicos nas dunas da Joaquina. Foto: Motaury Porto.
Existe um dito popular que diz mais ou menos assim: “o sujeito está com a vida por um fio…”. Muitas vezes isso é literalmente a verdade. No meu caso, a minha vida esteve por alguns “fios”.

 

Em 1995, já morando em Florianópolis há 7 anos, depois de muitas e muitas ondas surfadas e muitos velejos de windsurf (até então meus dois esportes favoritos), resolvi me aventurar pelos ares e fazer um curso de parapente, uma das modalidades do vôo livre. São vários os surfistas no Brasil e mundo afora que praticam vôo livre.

 

Minha primeira experiência com o esporte foi em 1983, no Rio de Janeiro, quando prestava

Panorâmica da praia Mole, quando o surf ficou emoutro plano. Foto: Motaury Porto.
vestibular para medicina. Na época eu já fotografava profissionalmente e quando vi uma asa-delta fazendo um vôo duplo sobre as areias de São Conrado, pensei comigo; aí está uma oportunidade pra uma boa reportagem.

 

A revista Fluir, para a qual já prestava serviços como colaborador, era inicialmente uma revista de Surf, Skate, Vôo-livre e Bicicross, e vi ali a minha chance.

 

Na praia abordei o cara que fazia os vôos. O nome dele era Casimiro. Conversei com ele dizendo que trabalhava para a revista Fluir e se ele se interessaria em fazer uma permuta do vôo pela matéria. Negócio fechado e lá fomos nós pra rampa de decolagem.

 

Eu estava bem adrenalizado, é lógico, mas super empolgado com a nova experiência. Na verdade eu havia sonhado aquela semana toda que estava voando (eu costumo sonhar até hoje que estou voando, muitas vezes levitando!).

 

Fizemos então os procedimentos pré-vôo e me lembro do Casimiro falar: “Quando eu falar já, você corre, mas corre com todas suas forças!”.

 

Os olhos dele fitavam a biruta no canto da rampa, e ele dizia estar ótimo e quem sabe daria para ganharmos a Gávea (ou seja: ganhar altitude suficiente e sobrevoar a Gávea)Ele falou já e… Lembro até hoje a sensação dos pés “largando” a terra e meu corpo flutuando naquela pequena aeronave.

 

Foram minutos inesquecíveis e uma sensação que jamais tinha experimentado mesmo após muitos anos de surf. Fiquei marcado por aquela experiência. Na verdade voar está no inconsciente do homem. O sonho de Ícaro. A sensação de liberdade, o que o homem tanto busca em sua breve jornada neste mundo; ser livre!

 

A matéria saiu na Fluir número 3, eu acabei fazendo faculdade de Publicidade em São Paulo, onde morava, me mudei pra Florianópolis em 1988 e em 1990, quando viajava sozinho pela Nova Zelândia, passando uns dias em Queenstown (a cidade dos esportes radicais), vi algo que me chamou a atenção. Um parapente.

 

Tudo naquela pequena cidade na ilha sul da Nova Zelândia era diferente, o Bungee jump, e por aí afora. Informei-me sobre aquele “brinquedo” aéreo e disse pra mim mesmo: o dia que isso aparecer no Brasil vou praticar. Como as palavras têm poder, o Paragliding apareceu por aqui e, a convite da Revista Trip, fui fazer umas fotos do novo esporte.

 

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O sonho de Ícaro. Foto: Motaury Porto.
Teria que fazer um vôo-duplo, e aí deu aquele flash-back. Contatei o professor da escola Parapente Sul, o “Alemão”, e logo estávamos indo pra praia Mole, em Floripa, fazer o vôo e as fotos. Cara, eu não dormi direito naquela noite, só pensando no vôo. Tinha decidido; ia fazer o curso e começar a voar.

 

Então, foram muitas e muitas horas nas dunas da praia da Joaquina, treinando com o equipamento da escola. Cada dia se aproximava do meu vôo solo, onde estaria decolando sozinho de uma das rampas naturais de decolagem na praia mole, o que acabou acontecendo algumas semanas depois, no dia

Primeiro vôo solo de Motaury, na praia Mole, Florianópolis. Foto: Motaury Porto.

18 de março de 1995.

 

O dia estava lindo e tanto a decolagem, o breve vôo e o pouso foram tranqüilos.
Passaram-se os meses, os anos, muitos vôos na bagagem e o surf e o windsurf, até então os esportes de natureza que praticava, haviam ficado em outro plano. Voando eu me sentia “livre”, mais perto de Deus, contemplando muitas vezes o swell entrando, a galera surfando e toda aquela obra divina da criação do Senhor.

 

Depois do meu primeiro vôo de cross-country (distância percorrida), em que havia decolado da rampa do Rio-Vermelho atrás da praia do Moçambique, ganhei uma termal (corrente de ar ascendente) e fui tão alto, que pude ver muitas praias de Santa Catarina, pousando alguns quilômetros adiante, na praia dos Ingleses.

 

Estava maravilhado com a experiência e me sentindo pronto para voar no interior, decolagens mais altas, vôos mais técnicos de termais.

 

Resolvi então ir para Pomerode, a cidade mais alemã do Brasil, a algumas horas de Floripa, no interior do Estado. O dia estava lindo, com alguns eventuais Cumulus (formação de nuvens) e me dirigi para a rampa de decolagem, que ali já era em torno de 600 metros de altitude.

 

Dois colegas de vôo apareceram e me ajudaram a dar lastro na decolagem. O vôo já ia pra mais de meia hora e estava voando tranqüilo entre as termais quando, de repente, uma nuvem bem grande, um cumulus de responsa, encostou no vale. Foi tudo muito rápido, eu fui subindo, subindo, o altímetro marcava 9 metros por segundo!

 

Olhei pra cima e a nuvem cinza estava por me “tragar”. Foi quando deu um “branco” em mim, e em vez de dar uma “orelhinha”, manobra que diminui a área vélica do parapente, alterando a razão de planeio, ou executar curvas assimétricas para descer da nuvem, acabei freando-o até reduzir minha velocidade o suficiente para entrar em stoll e ele literalmente fechar.

 

 

Foram segundos de pânico e total adrenalina. Em negativa eu ia rodando e vendo tudo girar. Ele reabriu milagrosamente e o pior ainda estava por vir. Devido a alta velocidade quando reaberto, meu corpo foi ejetado para cima e o parapente para baixo.

 

Naquele instante o tempo parou e eu “escutei” o silêncio mais absoluto, a face da morte na minha frente. Eu ia cair dentro do Parapente, ser embalado por ele e vir como uma bala pro chão! Não daria nem pra tentar usar o reserva que levava comigo na selete (mochila-cadeira) onde o piloto senta.

 

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Mais perto de Deus. Foto: Motaury Porto.

Orava a Deus para cuidar da minha família e estava consciente que iria morrer. Mas ao mesmo tempo clamei ao Senhor pela vida! Os meus colegas de vôo me disseram depois que foi o pior acidente (fechada) que eles haviam visto na vida e estavam atentos para ver onde eu cairia para resgatar meu corpo.

 

Bom, Deus me susteve em Suas mãos, pois por um verdadeiro milagre não caí dentro da vela, voltei à posição de vôo sustentado e pousei perfeitamente num lindo gramado, ao lado de um lago e de uns patos.

 

Se eu caísse ali no lago mesmo me daria por

Praia do Gravatá, a Sunset de Floripa. Foto: Motaury Porto.
satisfeito; mas foi o melhor pouso em todos meus vôos. Coloquei-me de joelhos e agradecia a Deus por estar vivo e sem nenhum osso quebrado, nenhum arranhão! Dobrei meu parapente e pensei: tenho duas escolhas, ou vou lá dar outro vôo para tirar o medo e o trauma de voar, ou vou parar para sempre.

 

Meditei por alguns minutos, olhei para meus colegas voando, o céu azul já sem aquele “monstro” que quase me tragara a vida, pensei na família (não teria nem visto minha filha Victoria nascer nem meu filho Cristiano crescer), lembrei dos vários acidentes que vi com conhecidos meus e outros voadores mundo afora, fora alguns bons sustos que havia passado. A decisão  estava tomada: iria parar.

 

Foi uma decisão muito difícil para mim, abrir mão de algo que estava apaixonado. Mas não podia ser egoísta, pelo menos duas vidas dependiam de mim. Na semana seguinte vendi o parapente para o Maurão, big rider da praia da Joaquina e que estava começando a voar, e desejei boa sorte pra ele.

 

Estou ciente que cometi um erro no vôo. Mas comecei a pensar; o que na vida agente não aprende através dos acertos e dos erros? No vôo é assim, a lei da gravidade está ali todo o tempo e é um esporte que praticamente não admite erros.

 

Parei para meditar e pensei na minha vida; quantas vezes errei e ainda erro, mas Deus está sempre disposto a me levantar, me perdoar e ensinar a andar, a “voar”. A vida é uma seqüência de escolhas e assim foi esta.

 

Do tempo de vôo guardo algumas das lembranças mais maravilhosas de minha vida, as vistas espetaculares que vi, a sensação de liberdade que tive ali no céu, conversando com Deus e meditando na vida e guardo as amizades que fiz com a tribo do vôo livre aqui de Floripa.

 

No mais, voltei a surfar mais, velejar de vez em quando, caindo numa água macia e de uma altitude suportável. A vida continuou e aquele “susto” fez minha fé crescer e ver que Deus cuida mesmo e que seja qual for a “nuvem” que quiser te engolir ou a “tempestade”, “tornado” ou “furacão” que te ameace, Deus é sempre o abrigo certo, a mão forte que te livra.

 

Aqui estão reproduzidas algumas fotos que tenho guardado dos tempos de “passarinho” e divido com vocês. Ah, até hoje sonho que estou voando. Aliás ainda vôo, de outra forma na presença do Criador!

 

Que o espírito do Natal possa nascer no coração de cada um.


Valeu!