Leitura de Onda

A naja irritada

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Onda gigante de Jaws, Maui, intrigante e desafiadora. Foto: Bruno Lemos / Lemosimages.com.

Faz dias que ondas me cercam e não são tubos. Referências à palavra foram utilizadas pela mídia recentemente, no início de janeiro, quando verdadeiros tsunamis se formaram a partir de fortes chuvas tropicais e, morros abaixo, devastaram cidades da Região Serrana do Rio, numa contagem (até agora) de mais de 800 mortos. 

 

Impressionantes, as trágicas fotos estampadas nos jornais, porções congeladas da destruição causada, aguçaram a curiosidade da minha filha mais velha. Ana, 6 anos, já é leitora esporádica de notícias, quando elas ficam à mostra sobre a mesa do café da manhã. Perguntadeira, quis saber mais sobre a formação e a força de ondas e tsunamis, sem entender direito como aquilo ocorrera em cidades sem praia…
 
No verão passado, nas águas de Geribá, Búzios, quando começou a dar os primeiros passos sobre meus pranchões de surfe, a menina já havia demonstrado um interesse extra pelas ondulações: “Pai, o mar está lisinho, calminho, e, de repente, aparece a onda, que depois some… Como pode isso?”.

 

Nem me lembro exatamente o que respondi, mas sorri por dentro ao perceber que, por anos a fio, me fiz essa mesma pergunta quando garoto, até conseguir entender melhor conceitos geológicos, geográficos, climáticos, físicos e – por que não? – divinos desse fenômeno.
 
Antes que a minha caçula, Lara, de 2 anos (que por enquanto só pula ondinhas na beira), comece também a me enlouquecer com perguntas difíceis, resolvi entrar no Google para, junto com a Ana, desvendar o mistério dos sete mares em linguagem acessível.

 

Até me lembrei, com certo arrepio, dos conceitos ensinados na longínqua década de 80 pelo professor de Física. Com o cigarro (aceso!) numa das mãos e o giz na outra, o professor Teixeira riscava o quadro negro com fórmulas para explicar aos moleques de praia o abstrato daquilo que eles já conheciam de concreto no mar: as ondas. Comprimento, velocidade, amplitude, período e frequencia se entrelaçavam por entre símbolos matemáticos e letras gregas, como o lambda. Lambda???? Realmente, aquilo parecia grego. Indecifrável.
 
Graças a Deus, às imagens do Google e à minha experiência como surfista, consegui dar à Ana noções básicas de fundo do mar, ondulações e ventos até sua paciência se esgotar. “Papai, vou ver Shreck” foi a senha para que eu começasse, agora sozinho, outra busca na internet, já que numa das pesquisas que fizemos vi dezenas de citações a livros sobre ondas e surfe. 

 

Fiquei surpreso com a diversidade de títulos. Histórias de aventura, romances, biografias, vários lançamentos editoriais chamaram a atenção. Um deles em especial, de Susan Casey, me atraiu. O best-seller “A Onda” (Ed. Zahar) é, segundo uma das críticas, “uma introdução à complexa física das ondas e uma viagem com os surfistas e cientistas que a perseguem”. O comentário foi definitivo e bastou para eu comprar o livro que, daqui a alguns anos, pretendo oferecer à Ana.
 
Obviamente, não consegui esperar anos e comecei a ler o presente da minha filha ainda no café da livraria. A autora mira nas ondas gigantes pelo olhar de personagens íntimos a elas, como marinheiros e petroleiros, além, claro, dos já citados surfistas e cientistas. Logo na introdução, percebe-se que será uma jornada para quem tem fôlego.

 

Com perfeição, a autora descreve as sensações de quem já se deparou, voluntaria ou involuntariamente, com “vagalhões ou ondas monstruosas”. Ondas de 30 metros ou até mais, tidas como mitos ou histórias de pescador em tempos passados, protagonizam episódios reais e cientificamente comprovados nos dias de hoje. 
 
A descrição do pânico de cientistas do navio RRS Discovery na escuridão do Mar do Norte em 2000 ou a adrenalina de Laird Hamilton em Egypt (Maui), no ano de 2007, nos roubam o ar, mesmo em terra firme. Palavrões, em alguns momentos, são os termos mais adequados para traduzir o espanto frente a essas “aberrações” do mar.

 

Substantivos como fúria, expressões como “ataques de raiva da mãe natureza” e relatos de tripulações inteiras desaparecidas em alto mar, navios destruídos e pessoas “engolidas” pela água dividem espaço com histórias do tow-in, o espanto, o medo e o prazer das aventuras desse ousado esporte. Nas palavras de Hamilton, eis a descrição dos paredões de água que viu em Oahu e Maui, longe das multidões de surfistas: “Era o desconhecido. Como o espaço sideral ou o mar profundo”.
 
Tal como Ana busca explicações para a mera existência das ondas, Susan Casey persegue o mistério da onda gigante, visualizada como “o capelo de uma naja*, estendendo a face”. Com linguajar simples, sem lançar mão daquelas letras gregas do professor Teixeira, a autora fornece informações de cunho científico: “Uma onda de 30 metros quebrando concentra cem toneladas por metro quadrado e consegue partir um navio pela metade”.

 

Em outro trecho, serve mais dados para alcançarmos o poder destrutivo desses “seres” do mar: “A força das ondas é inegável. Uma onda de meio metro consegue derrubar um muro erguido para suportar ventos de 200 quilômetros por hora”.
 
Ao fim do livro, me dei conta do óbvio: a potência da onda gigante que destrói é a mesma que constrói a felicidade dos surfistas, intriga os cientistas e fascina os marinheiros (além dos leitores!). Como quase tudo na vida, as ondas gigantes têm, pelo menos, dois lados, e isso pode ser uma bela lição para a pequena Ana, seja ela no futuro uma cientista, uma surfista ou, simplesmente, uma curiosa.
 
* Segundo o dicionário Aurélio, capelo é a “formação constituída pela dilatação do pescoço das najas, quando irritadas”.

 

Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".