Leitura de onda

A manobra

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De alaia ou pranchinha, Marcelo Trekinho curte a manobra que todos buscam intensamente. Foto: Ricardo Borghi.

Sábado passado eu lagarteava com amigos na areia do Leblon, em busca de um raio quente do frio sol de inverno, quando Marcelo Trekinho chegou com sua Alaia.

 

Alaia é a origem, o início de tudo: a prancha de madeira, sem quilha, sem envergadura, usada pelos polinésios que ensinaram ao mundo ocidental os verdadeiros símbolos do surf.

 

Pois lá estava Trekinho com sua réplica e o velho sorriso no rosto. Pediu um pouco de parafina e entrou na água para desfrutar de ondulações de um metro perto da pedra. Veio numa onda com junção e, cá com meus botões, pensei: o que o cara vai fazer com um pedaço de madeira pesado e sem quilha naquela zona crítica?

 

Trekinho não saiu da onda: preferiu explodir num reverse absurdamente potente e voltou desgarrando, invertido, como se estivesse num foguete repleto de quilhas e tecnologia. Fez a onda até a beira. Perto da areia, mas ainda em pé na prancha, não resistiu: vibrou como uma criança que descobre um presente escondido no quintal de casa.

 

Eu e meus amigos incorporamos os polinésios e, por um momento, urramos juntos na areia.

 

O cara foi campeão de etapa do circuito brasileiro, é um dos surfistas mais completos do país e estava ali, como um amador na melhor acepção da palavra, extasiado com apenas uma manobra.

 

Aquilo me fez pensar na importância de determinados manobras na nossa vida. Quem aqui não guarda num canto nobre da memória todos os detalhes de batidas, rasgadas e mesmo cutbacks executados ao longo da vida?

 

Minha primeira rasgada, por exemplo: dia de sol e água fria na praia do Forte, em Cabo Frio, prancha Hidrojets 5’8” na água, pequenas direitas escorrendo pelo banco de areia, início dos 80. De repente, sinto a prancha encaixar num trilho que me permite ir à base e virar no alto da prancha, sem esforço, com suavidade.

 

A euforia que eu senti depois de sair da onda é uma das razões que me faz estar aqui, agora, aos 38 anos, escrevendo sobre surf. Quis – e ainda quero – repetir isso para sempre.

 

A manobra não precisa ser um reverse improvável num pedaço de madeira. Pode ser uma batida, o ultimamente rejeitado floater ou mesmo a profunda sensação de simplesmente estar no corte da onda. Cada um tem um limite, cada um tem um prazer.

 

Um movimento bem executado no mar guarda semelhança com outros movimentos da vida. Dentro ou fora da água, para ter sucesso o surfista precisa equilibrar ousadia, concentração e, acima de tudo, um desejo incontrolável de viver. Muitas vezes uma pequena e corajosa manobra pode determinar o sucesso de toda a trajetória.

 

Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

 

 

 

 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".