Surf & Aventura

A hora é agora

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Filipe Toledo levou o surf a outro patamar em J-Bay. Para o colunista, é hora de revisar os critérios de julgamento antes das Olimpíadas. Foto: © WSL / Cestari.

Chegou a hora da troca de guarda. Mudanças são necessárias em quase todos os setores da vida. É preciso evoluir, progredir, melhorar a qualidade de vida, a qualidade do seu trabalho e a qualidade do seu esporte.

O problema é que o ser humano é conservador, torce o nariz para mudanças radicais e prefere que elas aconteçam aos poucos. Melhor ainda, que não aconteçam.

O surfe como esporte já vem recebendo mudanças há uns bons anos: materiais de prancha, computação, quilhas. Até mesmo as parafinas melhoraram e tornaram-se específicas para cada mar.

Mas falta o principal, e agora não tem mais jeito. Tem que ser mudado.

A velha guarda do surfe, os caras que inventaram os campeonatos, fizeram sua parte. Fred Hemmings e Randy Rarick na organização e Peter Townend, Mark Richards, Shaun Tomson e Wayne “Rabbit” Bartholomew deixaram marcas intocáveis. Praticamente criaram o livro de regras, suas manobras, o que é preciso fazer para ganhar um campeonato.

Mas isso foi há 40 anos, mais exatamente em 1976, na fundação da IPS (International Professional Surf). Agora é preciso deixar rolar. E quem está no poder, precisa cortar o cordão umbilical com a velha guarda, agradecer, mas livrar-se da old school e partir para novos horizontes.

Jeffreys Bay mudou o mundo do surfe

Vamos por partes para entender que mudança radical deverá ser feita no surfe, cedo ou tarde.
Primeiro: o grande Shaun Tomson, um dos principais responsáveis por tornar o surfe um esporte profissional, disse claramente como comentarista no evento em Jeffreys Bay que a onda de dois aéreos do Filipe: “foi a melhor onda surfada em competições que vi em toda minha vida.”

Não, ele não falou uma das melhores, ele claramente disse que foi a melhor. Tomson ficou encantado com o brasileiro e chamou Filipinho de “Killer Ninja”.

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O legend Shaun Tomson encantou-se com as manobras do brasileiro e o apelidou de “Killer Ninja”. Foto: WSL / Pierre Tostee.

 

Em outras transmissões ele dizia que o garoto de Ubatuba, filho de Ricardinho, neto de Zé Maria, era fantástico porque possuía todos os golpes, ou seja, todas as manobras – enfiava a borda na onda sem medo, batidas radicais, cutbacks velozes, bottom turns apurados, colocação nos tubos, floaters e, claro, aéreos. Todos os ‘golpes’, veja bem.

Então, porque não rever os conceitos e revisar o livro de regras da WSL para pontuação em ondas? Além de Filipinho, outros garotos da nova geração estão aí com golpes afiadíssimos.

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John John Florence faz parte da nova geração que está deixando para trás o tradicional drop, bottom / batida. Foto: © WSL / Cestari.

Caso de JJ Florence, Gabriel Medina, Julian Wilson e os que estão chegando como Frederico Morais, Conner Coffin, Ezekiel Lau. Esse povo vai passar por cima.

O floater, por exemplo. Essa manobra era relegada à segunda categoria. “Floater em ondas abaixo de 8 pés é coisa de boiola.” – disse o genial Derek Hynd, ex-surfista profissional, jornalista e escritor que criou livros e matérias espetaculares sobre o surfe.

Continuando, Filipinho na final de Jeffreys bateu Fred Morais por causa daquele monstruoso floater na primeira onda de 9.17. Todo mundo comentou por horas. Foi a manobra que fez a diferença. E a onda não tinha 8 pés. Anos atrás, o saudoso Andy Irons meteu dois floaters na cara do Kelly Slater em Pipeline que deixaram a praia de boca aberta até hoje. A verdade é a seguinte, nua e crua: o livro de regras da WSL precisa incorporar, entre outras coisas, com mais critério essa manobra, o floater.

Os aéreos vieram para ficar. Pranchas mais leves e menores (fico impressionado com Kelly Slater e suas ‘pranchinhas’ de adolescente, 5’10”, 5’11”), além de um preparo físico excepcional.

Hoje os atletas contam com equipe formada por nutricionista, preparador físico, fisioterapeuta, enfim, são dignos de Olimpíada, e tudo isso soma para o aumento de manobras ultra-radicais como os aéreos.

Não se imaginava há 40 anos sair do tubo e dar um aéreo. Ou dar um aéreo e entrar no tubo. Está acontecendo de tudo. E essa parafernália de manobras misturadas na mesma onda, que a molecada está apresentando, deixando para trás o tradicional drop, bottom, batida, cutback, bottom / batida. Essas novidades precisam ser criteriosamente pontuadas, com maiores e menores valores.

É bom para o surfe, vai atrair mais assistentes, maior audiência, mais patrocínios, mais dinheiro para todo mundo. Aqui um parêntese. Vou explicar: nem todo mundo pratica ginástica olímpica, mas é o esporte (nas Olimpíadas) que mais atrai público e audiência na televisão. E o que mais consegue patrocínios mundo afora.

Eu vi e ouvi Renato Hickel (diretor de campeonatos da WSL), juiz e head judge de primeira linha, afirmar que o juízes querem ver ousadia, nada de “safe surfing”. Ok, então. Conforme pedido, os meninos do Brasil e do mundo estão partindo pros finalmentes, mas e a pontuação? É o ponto final para o surfe seguro, burocrático, embora perfeito, do bottom, batida, cutback e tubo?

O livro de regras da WSL precisa ser revisado e modificado. O próprio Shaun Tomson disse isso durante a competição na África do Sul. Eu apoio e aprovo. Eu luto por isso há anos, até mesmo para melhorar o julgamento, melhorar os juízes que recebem críticas violentas em todas as competições.

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Não se imaginava há 40 anos sair do tubo e dar um aéreo. Ou dar um aéreo e entrar no tubo. Está acontecendo de tudo. Foto: © WSL / Cestari.

A quantidade de notas 10 concedida em Jeffreys foi exagerada. A nota 10 do Fred Morais para virar a bateria e derrubar o JJ Florence na última onda foi um escândalo. Aliás, após o sexto “10”, do Filipinho nos dois aéreos, todos acreditávamos que os juízes iriam maneirar. Os locutores em inglês da WSL disseram isso.

Na bateria seguinte as ondas vieram com notas 6, 6,5, bem baixas, pois o mar estava enorme e as ondas bem surfadas. Mas durou pouco, logo eles começaram a dar notas muito altas, vieram mais duas notas 10, deixando a excepcional onda do Filipinho em segundo plano.

A perfeição do 10 é fundamental

Veja bem, nota 10 é o luxo, o que há de melhor. Não é para ser distribuída que nem caqui em final de feira. Vou dar mais um exemplo da ginástica olímpica. Em 1976, nas Olimpíadas de Montreal, a romena Nadia Comaneci realizou uma performance tão espetacular que recebeu nota 10 nas barras assimétricas.

A ginástica, assim como o surfe, também conta com julgamento subjetivo. Dali em diante, várias notas 10 foram dadas por anos e anos nas mais diversas competições. Passou dos limites e a Confederação Internacional de Ginástica mudou o livro de regras: acabou com essa farra da nota 10. Melhorou muito e as reclamações diminuíram bastante.

 Lutamos por uma revisão e mudança no livro de regras da WSL. E melhor treinamento para os juízes. As reclamações estão aumentando mês a mês, ano a ano. Essa nova radicalidade precisa ser minuciosamente explicada no novo livro. E criteriosamente julgada. As manobras aéreas precisam ser incorporadas para valer (Medina deu uma dessas em Pipeline, o povo torceu o nariz, porque Pipe é lugar de tubos e não de manobras aéreas. Será?) Os juízes gostaram e ele venceu a bateria.

Então que fique claro isso. O floater tem que subir um degrau na escala de manobras difíceis e deixar de ser apenas uma manobra para o surfista se acertar no lip que chegou primeiro. A nova guarda está aí, ansiosa e deslumbrada, pronta para novas acrobacias.

E vou mais longe: e as Olimpíadas de 2020? Como será o julgamento? Quem vai julgar? A WSL? Qual livro de regra será utilizado? Quais as manobras receberão notas maiores? Já foi decidido? Estamos vivendo exatamente a hora certa para rever o livro de regras até para estabelecer os padrões para a Olimpíada de Tóquio. É a estreia do esporte no maior evento esportivo da terra, e eles não permitem erros.

Várias notas 10 na Olimpíada serão motivo de chacota mundo afora. Julgamentos sem critério, ou misturando os critérios, não podem ser admitidos, com risco de perder toda a credibilidade no Comitê Olímpico Internacional.

A velha guarda do surfe, atletas, organizadores, juízes, fizeram o melhor trabalho possível, mas é hora de mudar muita coisa, considerar os atletas, as mudanças fundamentais que aconteceram no surfe neste século e deixar a nova guarda ousar, competir, inventar e oferecer o maior show da Terra, que é esse de triturar ondas estupidamente difíceis como de Jeffreys Bay.

Ali, os meninos do Brasil, dos EUA, Hawaii, Austrália e Europa mudaram o mundo, mudaram os critérios. Viraram uma página na história do surfe mundial. É hora de mudar.

Escambaus

#Ricardo Toledo e o manager do Filipinho deveriam adotar o apelido sugerido por Shaum Tomson: “Ninja”. Ficaria legal Filipe “Ninja” Toledo (não tinha o Wayne “Rabbit” Bartholomew?). Então.

#Além de surfe vou escrever sobre aventuras radicais aqui: biking e trekking, pois todo surfista é um radical por excelência e gosta de aventuras

#Em setembro próximo estarei em Israel. Vou ver e checar o surfe por lá, nas praias de Tel Aviv e Haifa, e colocar muitas fotos por aqui e o local certo dos picos na região. Vou também com a Walk About Love me aventurar pelo Oriente Médio.

#Em breve vou disponibilizar a História do Surf no Brasil na internet. De graça, textos e fotos, enquanto não vem a edição completa da Enciclopédia do Surf no Brasil, de Reinaldo Andraus, o Dragão.

#Dia 12 de agosto o pau vai começar a comer solto no Tahiti. Muita gente que perdeu em Jeffreys está à procura de revanche. Escutem o que eu falo: a rivalidade está no bico da prancha, principalmente os líderes do campeonato – Wilko, JJ, Owen Wright, Jordy e Mineirinho, que ficaram de fora da festa final. E agora será a vez dos goofys. Preparem-se.

#Aceito sugestão de pautas. Abraços a todos.

Alex Gutenberg
Nos anos 80, foi diretor de redação da Fluir, autor do livro “A História do Surf no Brasil" e um dos fundadores da ABRASP.