Leitura de Onda

A busca continua

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Ruben, proprietário da pousada Rocanegra, aponta os picos da região de Chillan. Foto: Rocanegra Mountain Lodge & Spa.

 

Para ser surfista, o sujeito não precisa de equilíbrio, fala mansa, estilo. Normalmente, esses atributos, ele arruma no caminho.

 

A vocação fundamental de um homem de prancha é o espírito aventureiro, afeito a buscas arriscadas de uma onda imaginária. Ele sabe que são remotas as chances de realização plena do sonho – leia-se mar perfeito, água quente, sem crowd.

 

Mas a busca, apenas a busca, é a razão de tudo. Arrisco-me a dizer que o surfista, essencialmente, não existiria sem a incerteza.

 

Esse princípio sagrado, esse gatilho que torna tudo impermanente e emocionante, rege também outros esportes de prancha que nasceram do sonho do surfista. Bom exemplo é o snowboard, filho gelado do surf.

 

Todos os anos, hordas de surfistas de alma empacotam suas tábuas com alça e viajam em busca de montanhas recheadas de neve em pó, o chamado powder. Essa é a equivalência da onda perfeita para o snowboarder.

 

Engana-se quem acha que a onda perfeita do snowboard está ao alcance do primeiro lift de estação de esqui. Não. A neve perfeita – em pequenos flocos, leve e seca – não é um bem comum, ao alcance de todos. Fora da pista, muitas vezes é difícil acessá-la.

 

Na pista, dura muito pouco – o tempo da chegada dos primeiros fissurados ou do trator, que iguala a neve para os esquiadores convencionais.

 

E, assim como no esporte original, é ali, na condição mais difícil de ser gerada pela natureza, que realmente a experiência do snowboard pode ser comparada aos melhores dias de surf.

 

Viajei esta semana para Chillan, região do Sul do Chile conhecida pelos vulcões e montanhas nevadas. A viagem até lá, se houvesse um indicador de perrengues, não estaria nem nos pés das mais selvagens aventuras do surf, como Asu, Nicarágua e a Namíbia.

 

Mas ninguém chega a um pico desejado sem uma pedra no caminho.

 

O percurso inclui um voo ate Santiago, uma viagem de ônibus ate Chillan e outra, mais adiante, até a montanha. Você não chega ao destino em menos de 24 horas. E isso, para um canto vizinho, da América do Sul, não é pouco.

 

A busca por picos nevados tem outra pedrinha, esta mais pesada, no caminho. É que, para chegar lá, o surfista de alma precisa superar o luxo que cerca o ambiente de esqui. Não tem aquele papo de cerveja baratinha. Cerveja, no mercadinho mais ralé de Las Trancas, localidade mais próxima da montanha, custa 6 pratas. One way, miúda.

 

Caminho livre, é hora de alcançar o pico dos sonhos. Isso, claro, se a neve aparecer. A natureza impõe uma série de exigências para fazer os flocos caírem do céu. Esta semana, por exemplo, pintaram nuvens carregadas e chuva, mas estava estranhamente quente. O freezing level, nível no qual a precipitação deixa de ser chuva e se torna neve, estava muito alto.

 

Faltou falar sobre o outro atributo desejável do surfista: a esperança. Neste momento, escrevo do Rocanegra Mountain Lodge & Spa, um aconchegante hotel de madeira encravado no meio de uma floresta de pinheiros, a poucos quilômetros do sonho. 

 

Lá fora, choveu o dia todo. Mas, no fim do dia, eu vi os primeiros flocos de neve caindo junto com a chuva. Juro que vi. Tomara que amanhã chegue logo.

 

 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".