Muitas águas

Quem sonha arrisca tudo

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Visual do Arrisca-Tudo em foto publicada na primeira edição da revista Fluir. Foto: Motaury Porto.
Lendo a edição de aniversário da revista Fluir, que neste mês completa 21 anos, me lembrei da oportunidade que tive de estar presente na edição número 1 da revista como fotógrafo e surfista.

 

Em 1982, com 18 anos, já há seis anos surfando com pranchas de fibra (pois inicialmente aprendi a pegar onda em pranchas de isopor), fui com meu amigo e surfista Mike, fabricante na época das pranchas Summer Birds, para Recife para surfar nos beach-breaks e reef-breaks da região.

 

Ficamos hospedados na casa de Pedro Reitler, recém-falecido, e que na época era um desbravador do litoral pernambucano. São várias as lembranças daqueles tempos.

 

Numa delas, lembro-me de que na casa da mãe do Pedro havia muitos coqueiros e que nós bebíamos muita água de côco. Cara, eu estava maravilhado com aquela dádiva, mas de tanto beber aquela água de côco desde o café da manhã, tive um desarranjo intestinal e tanto.

 

Motaury experimenta o drop na onda selvagem. Foto: Mike.
O surf em Recife era praticado por poucos e fomos muito bem recepcionados (uma das características marcantes do amigável povo nordestino). Surfamos em áreas onde hoje os tubarões nos devorariam, como no “Abreus” (acho que é assim que se escreve). Mas o foco deste relato é outra onda, chamada Arrisca-Tudo.

 

O Pedro tinha um rancho na praia da Galheta, ao lado de Gaibú. No seu bugue, passamos por vários atoleiros desde Piedade até lá. Foi uma aventura e tanto, a gente com as pranchas, mochilas e dentro do peito aquele sonho de viver a aventura do surf selvagem, da descoberta, do desconhecido.

 

O rancho era bem modesto mesmo. Dormíamos em redes e não tinha luz elétrica. As histórias sobre o pico rondavam nossa mente. Ali era um local para poucos, e uma onda rara estava bem à nossa frente.

 

O nome do pico não dado à toa. Foto: Motaury Porto.

Seu nome: Arrisca-Tudo! O nome faz jus à onda. Num fundo de pedras bem raso, na ponta do canto direito da praia da Galheta uma massa de água se debruça, formando um tubo seco e bem perigoso aos desavisados.

 

Ficamos ali durante aproximadamente duas semanas. Íamos à pé, por entre os morros, surfar em Gaibú, comer uma salada de frutas com creme de leite no “Pingüim” e depois um peixe fresco no almoço. A vida passava lentamente, longe da agitação da cidade. Para mim e para o Mike, que morávamos em São Paulo, aquilo era o que de melhor podíamos experimentar.

 

Uma vida simples e descomplicada, barata e saudável. Afinal, este era o porquê de estarmos surfando, achar um escape para aquela vida tumultuada dos “tempos modernos”. Vivíamos o surf style! Fizemos vários amigos, tanto ali como em Recife, onde Mike fazia contatos para sua fábrica de pranchas.

 

Enquanto isso, aguardávamos ansiosos o Arrisca Tudo acordar. A onda não saía de nossa imaginação. O medo também pairava no ar. Júnior, um médico que também surfava aquela onda, mostrava sua cicatriz da operação que fizera depois de fraturar o fêmur em várias partes no pico.

 

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O surfista/fotógrafo prepara a cavada e posa pra foto. Foto: Mike.
Ele contou que sua perna ficara presa numa fenda na laje, e que a onda “triturou” o osso. Contava da agonia de ir gemendo pelas estradas esburacadas até o hospital em Recife. Nossos olhos ficavam fitos nele contando esta cena, a saliva descia presa à garganta tamanho o drama! Mas, também as histórias dos tubos e mais tubos nos faziam esperar pela próxima lua cheia, quem sabe?

 

Num casebre sem eletricidade, na era pré-internet, sem disk-onda, nem mesmo TV, o instinto, a expectativa era o que falava mais forte. E não deu outra; acordei bem cedo com um barulho diferente, o mar estava agitado e forte. Corri por entre a trilha e custei a acreditar no que via. Uma onda contornando o canto do costão, era o Arrisca-Tudo, tinha chegado a hora!

 

Corri pra chamar o Mike e como na época já fotografa surf em minhas viagens, coloquei o filme na máquina e comecei a registrar a onda. Ah, como é difícil para um surfista ser fotógrafo de surf! Eu queria documentar aquela onda de todos os ângulos, de todas as formas possíveis, mas ao mesmo tempo queria me jogar pra dentro d’água e pegar tantas ondas quanto pudesse.

 

A onda quebra em condição de point-break. Foto: Mike.
Remamos pelo canal e aos poucos fomos descobrindo a onda, onde ela quebrava, o tempo do drop, a cavada na hora certa, o tubo. Uau! Eram altos tubos, lips volumosos e perigosos. Vez ou outra vinha na mente a cena do Júnior se quebrando. Mas graças a Deus ninguém se acidentou. O sol já ia alto e eu não podia ficar sem umas fotos. Na praia, falei com um jangadeiro e ele, meio a contragosto, me colocou na “cara do gol”, no melhor estilo Teahupoo.

 

Foram muitas fotos e muitos berros a cada tubo. Num determinado momento falei pro Mike ficar na jangada e fazer umas fotos minhas. Os filmes acabaram e ele voltou pra praia. Já havia me dado por satisfeito, feito várias fotos, surfado altas e agora já tinha também registrado meu primeiro dia de surf na temida lenda.

 

Estava esperando mais uma onda, já no final das muitas horas no mar, quando olho pras pedras e vejo o Mike. Ele estava com a câmera na mão. Nisso, entra um grande volume de água. Começo a remar forte e entro com minha biquilha (na época no auge), e despenco na maior onda que aparecera no dia. Quando olho pro Mike ele pulava e agitava freneticamente as mãos nas pedras. A foto estava feita e o momento registrado!

 

Perfeição e tubos na costa pernambucana. Foto: Mike.
Ficamos ainda vários dias desfrutando daquele swell de lua cheia, pegando muitas ondas e fazendo muitos amigos. Mas já era hora de voltar. Passados alguns meses, meu amigo Bruno Alves, surfista, fotógrafo e aventureiro do primeiro escalão, me contava que estava fazendo uma revista de surf com alguns parceiros, e que teria uma matéria de surf sobre o Nordeste na primeira edição.

 

Ele me perguntou se eu tinha umas fotos da minha viagem pro Recife. Deixei com ele várias cartelas de slides e para minha surpresa lá estava minha  primeira foto publicada na edição da então desconhecida revista Fluir, e uma outra foto minha dando aquele drop!


Passados estas duas décadas, o mundo mudou muito, Gaibú e a praia da Galheta também, os tubarões “invadiram” Recife, mas uma coisa não mudou dentro de nós: nossos sonhos!

 

Sonhar faz parte da nossa essência. O homem sonha, sonha… e o realizar é o nosso alvo. Hoje meus sonhos mudaram, tenho várias outras metas, mas Deus tem me conduzido a muitas realizações, e me livrado também de sonhos que muitas vezes são desilusões. Acredite, viva, sonhe, realize, ARRISQUE !!! Vale à pena tentar. E que Deus te guarde…

 

Obs: Gostaria de aproveitar para mandar um abraço pros brothers do surf que fiz naquela época e mais uma vez agradecer a hospitalidade, “Óxente”!