Leitura de onda

The good, the bad and the ugly

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Adriano de Souza: faca nos dentes na luta pelo inédito título mundial. Foto: © ASP / Kirstin.

A alguns segundos da última sirene do Volcom Pro, estava pronto para escrever uma ode à espetacular performance de Kelly Slater nas ondas de Fiji. Coisa assombrosa, fora da curva, prova cabal e definitiva de genialidade.

 

 

A velocidade, a forma como se colocava nos cilindros e, sobretudo, a abordagem de ataque nas batidas e rasgadas de backside sobre corais afiados merecem estudos, ensaios, teses de doutorado, poesias.

 

Eu torcia pelo prodígio renascido Gabriel Medina, é claro, mas não havia como não ficar admirado com o surfe do americano. Aquilo era o resultado de uma mistura muito rara de acontecer em qualquer esporte: talento sobrenatural, preparo físico invejável e conhecimento profundo da arena somados a duas décadas de maturidade competitiva e técnica acumulada.

 

Mas Kelly saiu da água. Passou pelo barco de Tavarua, foi tratado como rei por seus velhos amigos, locais da ilha, e entrou no barco do evento para a entrevista obrigatória. E aí, mais uma vez, atacou descabidamente Adriano de Souza, como se o brasileiro não pertencesse à mesma casta de surfistas, como se fosse um rejeitado.

 

Aquilo me incomodou. O prazer sentido por assistir ao magnífico espetáculo das finais de Fiji ganhou tom opaco.

 

Fui tomado por uma amargura, uma raiva que a gente só sente quando está diante de injustiças ou de opressão. Há quem diga que ele é um gênio do jogo mental – o que é verdade – e que a entrevista foi apenas uma parte da estratégia para minar a resistência do bravo Mineiro. Aí, discordo: respeito o mito, mas não vi legitimidade em sua ação.

 

Antes de explicar a origem de meu desgosto, é bom contar a origem da polêmica.

 

Adriano cruzou com CJ Hobgood e Julian Wilson no round 4. Por duas ou três vezes, fez a boia nos adversários para pegar a melhor onda. Passou em primeiro. CJ foi para a repescagem revoltado, e falou sobre o caso com o conterrâneo floridiano e velho amigo Slater.

 

Numa sessão de freesurf, eu seria o primeiro a condenar Adriano. Esse espírito fominha, de quem não sabe esperar a sua vez, costuma ser um sinal inequívoco de falta de civilidade, da ignorância que leva à armadilha da Lei de Gerson.

 

E, cá entre nós, nós, brasileiros, não somos exatamente novatos nesse tipo de comportamento.

 

Mas, numa competição, embora não seja uma conduta simpática, a disputa pelo domínio das ondas faz parte do jogo. Se é atitude pouco gentil ou não, são outros quinhentos. Vestir a camisa de lycra é uma opção para quem aceita as regras do jogo, mesmo as mais duras.

 

Cabe aqui também contextualizar os mundos distintos em que vivem CJ e Adriano.

 

CJ é um cara tranquilo, gente boa toda vida, que viu um título mundial cair em seu colo, sem vencer nenhuma etapa, no ano em que o terrorismo interrompeu o circuito no meio. É um ótimo surfista, um talentoso tube rider, mas sabe que está no ciclo final de sua carreira na elite.

 

Adriano nasceu noutro mundo. Foi criado sem grana, sob a influência do irmão militar, num país que até pouco tempo atrás detinha títulos mundiais bem menos honrosos que os de surf, como o de nação mais desigual do mundo.

 

Para cada vitória na vida, ele gastou litros de suor e determinação. Hoje, diferentemente de CJ, vive, talvez, na fase mais importante de sua carreira na elite, e briga, sim, pelo título. Mineiro não está no WCT a lazer. Ele está na guerra.

 

Neste cenário, é perfeitamente compreensível que um cara como CJ sonhe com um código de gentilezas dentro do surf competitivo, assim como me parece óbvio que, para Adriano, a briga é de faca nos dentes por todas as melhores ondas de uma bateria.

 

Quem cruza com ele na bateria já sabe: entra ligado ou acaba atropelado.

 

 

O tal código de gentilezas sonhado pelo bom Clifton James não resiste a dois dedos de mundo real: bastam algumas baterias para ver afundar máscaras de mocinhos. Joel Parkinson não é o santo que parece – que o diga Julian Wilson, que andou às turras com ele ano passado.

 

Slater sempre vendeu a imagem do surfista correto. Disse que amava Andy Irons antes de uma bateria que decidiria título mundial, levantou a mão para que Rob Machado batesse um “give me five” no canal de Pipeline, também numa bateria em que o caneco estava em jogo.

 

O cara é repleto de virtudes, mas um olhar crítico, mais cético, faz muita gente vê-lo como um estrategista, um mestre na arte da guerra. Quase um Sun Tzu.

 

Deste ponto de vista, a declaração de amor de 2003 tinha o único fim de desestabilizar Andy. Não deu certo. Slater perdeu e ficou profundamente abalado. Bem antes disso, em 1995, funcionou. Para bater na mão de Slater, Machado teve que surfar até o canal e, na volta ao outside, perdeu a prioridade. Slater virou a bateria e conquistou o terceiro título mundial.

 

Dentro de uma camisa de lycra, não tem herói, não tem vilão. Diferentemente do que quis fazer crer Slater, o mundo do WCT não está dividido entre “The good, the bad and the ugly”. É bom deixar essas caricaturas para o western spaghetti do gênio Sérgio Leone.

 

A declaração soou mal também porque Kelly sabe de seu poder de influência no mundo do surf. São palavras que costumam ser reproduzidas como verdade, decisões – como a de adiar ou realizar eventos – quase sempre acatadas e críticas com efeito devastador sobre os alvos.

 

A sorte dos brasileiros é que Adriano parece ter uma armadura emocional imperfurável. Cada vez que é atacado, ressurge com espírito forte e cada vez mais sangue nos olhos.

 

Tulio Brandão é jornalista, colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou nove anos no Globo como setorista de meio ambiente e outros três anos no Jornal do Brasil, onde cobriu surf e outros esportes de prancha. Atuou ainda como gerente de Sustentabilidade da Approach Comunicação. Na redação, ganhou dois prêmios Esso, um Grande Prêmio CNT e um Prêmio Abrelpe.

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".