Canja de galinha não faz mal a ninguém
Mais de vinte horas entre aeroportos e aviões somam-se às inevitáveis diferenças de fuso. Resultado: acorda-se com facilidade, na primeira noite, por volta das quatro horas da manhã. Do meu quarto, um entre muitos do gigantesco complexo turístico de Turtle´s Bay, já era possível pressentir a mudança de humor do mar. Linhas brancas apareciam no breu, uma após a outra, acompanhadas de um vento maral intenso.
Pois bem, eu estava certo de haver campeonato. Arrumei o restante das minhas coisas, dirigi-me para o térreo… No elevador, mais cinco pessoas; no café, pranchas avolumavam-se nas cadeiras… Tudo fazia crer que de hoje não passava…
Cheguei ainda escuro em Pipe. Estacionei longe do palanque, pois seguia as considerações de alguns camaradas. “Evite isso, evite aquilo”; “O crowd é de matar”; “Chega cedo, sai tarde, porque o trânsito é de matar”.
Tudo até aqui, embora não desmereça a ajuda de quem coleciona invernos no arquipélago e comigo fez o favor de compartilhar as suas impressões, parece muito distante do que vi. Suspeito, isso sim, que o terror é uma das mais poderosas armas para deixar o paraíso preservado.
Antes das sete horas da manhã, o único perigo à vista foi de abrir caminho para um ciclista e sua parceira na ciclofaixa que nos levaria até o palanque. No mais, desviei de galinhas e galos e passei minutos sem ouvir barulho de qualquer motor.
Japoneses e brasileiros constituem o centro de gravidade do surfe mundial
Consigo entender a loucura dos estrangeiros pela etapa do Rio. Além da água poluída, o aglomerado de gente nas areias somente encontra situação similar em Portugal. Não vi mais do que duzentas pessoas, confortavelmente sentadas ao redor do palanque. Em pleno domingo, achei pouco. Até mesmo a estrutura montada, seja por qual motivo, pareceu-me canhestra face a de outros eventos…
Boa parte do público era de japoneses, de diversas idades. Pude ouvir com frequência o idioma que insiste em pontuar as suas pausas melódicas com infinitos “ts” e “ds”…. Essa viagem para o Havaí é a maior demolição de julgamentos, docemente acalentados por anos, a respeito do que pensava haver no arquipélago. Concorria com a língua dos falantes da terra do sol nascente apenas a boa e velha ondulação do português.
No caso, via-se, aqui e acolá, quatro grupos de jornalistas, dos veículos de comunicação que acompanham o circuito, comentarem algo sobre a qualidade da ondulação. Não há sequer concorrência, à altura, para fazer tamanho ao aparato criado pelos nossos para cobrir essa última etapa.
Confesso que tive, com certa cara de sono, vontade de dizer para os camaradas: “Acordar cedo para isso? Não é possível!” Todavia, estava muito comovido de ver aquela onda quebrar. Não conseguia deixar de rir, comigo mesmo, enquanto, vez ou outra, no meio daquela confusão, uma onda rodava para anunciar que ainda nada havia sido escrito.
Em meio a um bonito Sheep Dog que chacoalhava-se ao lado de um silencioso casal, eu olhava o mar e escrevia rápidas mensagens para o fórum. Sabia ser difícil começar o campeonato hoje.
Dois surfistas, sem adesivo no bico, aventuraram-se a tentar algo na linha de arrebentação. Sem sucesso, remavam desordenadamente. Logo saíram. Escutei um curioso interpelar o jovem aloirado sobre as condições que havia experimentado há pouco. Ele balançou a cabeca negativamente… Aquela cena era desnecessária, pois nada, ou quase nada, aconteceu enquanto eles estavam lá. Resmungou algo e seguiu para Sunset.
Braço? É preciso perna para andar nas areias do litoral norte
Desanimava-me à medida que via Rock Piles quebrar lindas esquerdas. Pukukea também não fazia feio, com linhas longas e força, muita força. Para a minha surpresa, a linha de arrebentação continuava vazia e, pelo longo da manha, encontrei apenas um punhado de gente em Waimea. Verdade que as ondas quebravam pequenas, mas o quebra coco ja mostrava certa dentição. Apenas Pipe, quem tanto esperei encontrar em dias de glória, teimava em negar a sua beleza.
Quando dei por mim, de um dos grupos dos brasileiros, Jadson André levanta-se rapidamente. Ele pegou a sua prancha e correu para o canal. No placar eletrônico, anunciava-se que a próxima chamada ocorreria às oito horas. O terceiro reef espumava enquanto o camarada de sorriso largo parecia reeditar a dificuldade de encontrar um bom posicionamento, tal qual havíamos visto na última hora com a dupla que, nesse momento, já estava a meio caminho da praia do sol poente.
A primeira onda animou-me. Grande, cavada longa na base e uma sapatada. Cerrava os dentes e maldizia o comissário, que já havia decidido interromper os trabalhos por hoje. Confesso que ele estava certo, certíssimo, mas a onda do Jadson encheu-me de esperança. Ninguém na areia prestava atenção no que o ocorria quando o rapaz apontou o seu bico para Backdoor… Uma placa cai e o encobre por completo. Inacreditável: um tubo, ainda que rápido, foi encontrado. Por fim, ele termina a onda com outra sapatada. Estilo redondo, rápido… Há ali um enorme talento de reinvenção de si mesmo. Ele saiu da água, uma repórter avançou sobre o camarada com determinação. Nada a impediu de correr com segurança pela terrível areia fofa do litoral norte. Seguiu-lhe com igual afinco, um câmera. Todos queriam falar com Jadson, que sorri à medida que concede duas ou três entrevistas. Eu aproximo-me, levanto o celular e clico.
A manhã acaba. Eu, por minha vez, fui à procura de uma dica de alguém que encontrei no pequeno complexo do campeonato: “Lá, com essa direção de ondulação e com esse vento, você encontrará… você encontrará…”.