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No futuro seremos gringos

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Fernando de Noronha oferece ondas de fazer inveja aos “gringos”. Foto: Aleko Stergiou.

Ricardo Lobo, empresário carioca e ex-competidor, apresenta uma reflexão sobre o complexo de vira-lata dos brasileiros.

 

Com raízes em Ipanema, ele é proprietário da Veltra, conceituada fábrica de equipamentos e acessórios para surfistas, que atua no mercado desde 1984.

 

Com vocação comprovada na redação de crônicas que envolvem o universo do surf, Lobo envia-nos esta valiosa colaboração em texto. Confira abaixo.

 

Confesso que não tinha intenção de escrever sobre este assunto com receio de tratar de algo muito clichê, mas todas as vezes que vou pegar onda ou trabalhar no mercado do surfe escuto alguém pronunciar a palavra “gringo”.

 

No início, distraidamente, achava que gringo era sinônimo de estrangeiro, mas como nunca chamamos peruano ou argentino de gringo, descartei tal hipótese.

 

A cena que presenciei recentemente durante a venda de uma prancha em uma loja de surfe me fez escrever esta coluna. Ora, de onde vem essa mania de falar que isto ou aquilo é gringo? De onde vem essa palavra?

 

Do México. Isso mesmo, a origem da palavra “gringo” vem do México. Surgiu durante os conflitos entre o país e os Estados Unidos. Na ocasião, soldados americanos invadiram o território mexicano vestidos de verde enquanto a população local gritava “green go away”, pedindo que os yankees fossem embora.

 

Já no Brasil, precisamente no surfe brasileiro, a palavra gringo apesar de continuar tendo significado de exclusão parece seguir caminho oposto. Aqui nós é que temos que ir embora, eles ficam.

 

Eles ficam! Ora, eles quem? Os americanos? Vamos parar com esta história de sempre culpar os americanos por nossas desilusões. Já bastam os surtos do nosso querido vizinho Hugo Chávez.

 

A pergunta persiste: Quem são eles, então? Os australianos, os havaianos, os mexicanos? Sinceramente, também não sei responder quem são eles. Mas posso responder com segurança quem não são. Gringo no surfe brasileiro é um conceito de exclusão.

 

Quando pegamos uma prancha brasileira muito boa nas mãos dizemos: “Nossa, esta pranchinha é gringa!” Quando chegamos à praia e vemos um cara quebrando uma onda elogiamos: “Nossa, o cara tá com surfe de gringo!” Até quando o nosso mar está bom afirmamos: “O mar está gringo, altas ondas!”.

 

Exemplos não faltam. Nos últimos dez anos trabalhando com surfe, confesso que escutei tais comentários quase todos os dias, de Norte a Sul do país. De tanto ouvir, cheguei à conclusão de que o conceito de gringo no surfe brasileiro consiste em: tudo aquilo que não é brasileiro possui alta qualidade. Ou seja, não se trata apenas de um conceito de exclusão, na verdade, de auto-exclusão.

 

Vamos testar nosso conceito. Veja o exemplo acima em que chegamos à praia, vemos um cara quebrar uma onda e elogiamos: “Nossa, o cara tá com surfe de gringo!” Se o cara fosse um estrangeiro, tudo bem, estaria resolvido. De supostos preconceituosos, passaríamos a entendidos do assunto. Mas não é o caso.

 

No exemplo citado sabemos que o cara é brasileiro, afinal, admitimos que ele “está com surfe de gringo”. Neste caso, para melhor compreensão do que queremos dizer, devemos pegar o surfista e separá-lo do nível de surfe que ele possui.

 

Ou seja, o surfista é brasileiro e o surfe dele é de é gringo. Em outras palavras, não temos dúvida que o surfista do exemplo jamais será gringo. Nasceu e é reconhecido como brasileiro, mas naquele determinado momento, por conseguir alta qualidade, ele se superou e fez um surfe gringo. O surfe dele foi promovido a gringo, mas ele, coitado, continua a ser brasileiro.

 

O mesmo se dá no exemplo da prancha. Quando pegamos a prancha já sabemos que é brasileira, já vimos a marca. Como a tal da prancha está muito bem feita, dizemos que ela tem alta qualidade como as gringas.

 

Coitada da prancha, já está pronta e em nossos braços. Nasceu e foi condenada a ser brasileira para sempre, mas como somos pessoas justas damos a ela uma espécie de selo de qualidade de: “não brasileira”.

 

Aliás, com tanta qualidade, chamá-la de brasileira seria uma injustiça, uma ofensa. “Nossa, essa pranchinha está gringa!” Mais uma vez, assim como no exemplo do surfista, separamos a prancha de sua qualidade. Ora, mas vamos com calma! Lembre-se, não é uma prancha gringa e sim uma brasileira que se superou.

 

Seguindo esta opinião tão consolidada no surfe brasileiro, creio que no futuro conseguiremos nos comunicar de forma mais clara e objetiva. Só então vamos afirmar em nosso dia a dia que nossos surfistas, pranchas e ondas já podem ser consideradas “não brasileiras”. Ficaria mais ou menos assim: “Nossa! Você viu as ondas do Adriano de Souza ontem no WCT? Ele está pegando muito, parece até um não-brasileiro.”

 

Desta forma, fica claro percebermos que existe a muitos anos no surfe brasileiro um critério de qualidade pré-estabelecido e dividido em três níveis. São eles: “brasileiro”, “não-brasileiro” e “gringo”.

 

O nível “brasileiro”, que tanto dizem por aí, é o nível básico que sempre nos contemplamos. O nível “não-brasileiro” é aquele que atingimos quando conseguimos nossa auto-superação como vimos acima no exemplo da prancha.

 

Com relação ao “nível gringo”, sinto informar que graças ao sentimento que prevalece em nosso país, tal nível jamais será alcançado por nós brasileiros. Teremos sempre que nos contentar em sermos brasileiros e no máximo, em nossos dias mais brilhantes, podemos nos promover a “não-brasileiros”. Que pena, não é verdade? Jamais seremos gringos.

 

Aliás, a culpa é nossa. Fomos nós que criamos tal preconceito, ou melhor, auto-preconceito. Fomos nós que começamos a chamar “eles” de gringos. Respondendo a pergunta do início do texto: quem são eles? “Eles” são todos ou outros que não somos.

 

Até aí tudo bem. Mas o problema é que agora queremos ser “eles”. Usar as pranchas deles, se vestir como eles. Nossa, que loucura! Será que isso é possível? 

 

Claro! Não fiquem tristes! São nesses momentos que nosso jeitinho brasileiro sempre aparece para nos salvar. É muito fácil. Custa um pouco mais caro, mas garanto que dá certo. Só tem que ter fé, acreditar de verdade!

 

Compre uma revista de surfe, pode ser brasileira mesmo não tem problema, veja um anúncio de uma marca gringa e o endereço de uma surf shop mais próxima de sua casa. Vá até lá e compre uma prancha gringa.

 

Pronto, resolvido! Quando você chegar à praia todo mundo vai achar, pelo menos por alguns instantes, que você é um gringo. Todo mundo vai elogiar a sua prancha gringa e dizer que você evoluiu muito por causa da prancha. Ora, se deu certo com um surfista brasileiro do WCT, porque não vai dar certo com você?

 

Se você não é surfista, não se desespere! Você pode comprar uma camisa, uma bermuda e um tênis gringo. Garanto que assim você será um gringo, será aceito em todos os lugares e o “mundo” do surfe brasileiro ficará feliz com você. Afinal, você é o mais importante, o que faz mover toda essa engrenagem.