Leitura de Onda

Tributo a um rebelde

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Oscar Niemeyer gostava de ser tratado pelo primeiro nome – até por gente nova. Falava de mulheres e, como todo cara bacana, adorava as curvas.

 

Fez até pista de skate. E antes que começassem a reverenciar sua obra, soltava: “A arquitetura não é importante. O importante é a vida.”

 

Sempre foi generoso com os amigos, e sonhava com o fim da desigualdade no mundo. 

 

O gênio tinha uma alma rebelde, meio coisa de surfista. Num de seus textos, o “Poema da curva”, diz: “Não é o ângulo reto que me atrai. O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas (…), nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida”.

 

Entrevistei Oscar há sete anos, para uma revista inglesa de esportes de prancha chamada Adrenalin (que deu lugar à Huck Magazine).

 

Na semana da morte de Oscar, os editores do outro lado do Atlântico pediram para republicar, sem cortes ou filtros, o original de 2005, e eu aproveitei para pedir autorização para reproduzir no Waves. Boa leitura.


O senhor tem mais de 500 obras espalhadas pelo mundo, num cálculo subestimado já que conta conjuntos como o de Brasília como apenas um projeto. O que diria a quem vem por aí? 

 

Costumo dizer que a arquitetura não é o mais importante. O importante é a vida. E para viver o jovem precisa ler, se informar, acabar com esse negócio do homem especializado, que só sabe sobre um assunto, para haver maneiras de se fazer contatos em vez de cada um pensar pela sua profissão. De modo que a campanha que a gente faz agora é pela leitura. Leia romances, leia tudo.

 

Daqui a pouco o horizonte vai se ampliando e você sente a verdade que existe. 

 

Mas os cursos seguem um caminho contrário, de extrema especialização. 

 

Todo curso superior deveria ter aulas paralelas de literatura, filosofia, história. Não precisa o aluno ser intelectual. Hoje, aqui no escritório, por exemplo, era dia de aula de filosofia e sobre o cosmos, para a gente compreender melhor o planeta, que está fodido, cada dia aparecendo mais problemas, como os que a gente já conhece e vem por aí, que são a falta de água e o calor. O conhecimento nos torna mais humanos, evita que a gente se torne o típico self made man, o que é uma merda.

 

Certa vez o senhor disse que a arquitetura não muda a vida, mas a vida muda a arquitetura. Então, não há como a profissão ter uma função social? 

 

A arquitetura não muda nada, agora a vida pode mudar. O dia que a vida for mais horizontal, mais igual, a arquitetura vai atender a todos. Hoje o trabalho é feito para os governos e as classes dominantes. O pobre está fodido. A vantagem da arquitetura é que, pelo menos quando um projeto novo fica pronto, o sujeito chega e, do asfalto, tem o prazer de ver uma coisa diferente. Sabe que não vai usufruir nada daquilo, mas tem pelo menos um momento de prazer. 

 

Mas o senhor tem alguns projetos em comunidades de baixa renda.

 

Quando fiz os Cieps (projeto de escola pública aplicado em todo o estado do Rio), a garotada ia para a aula com muito orgulho, como se estivesse mudado de vida e começasse a usufruir de uma arquitetura que só os mais ricos tinham acesso. Fiz uma praça em Duque de Caxias (município pobre da zona metropolitana do Rio), com teatro e biblioteca. Não deixei de fazer um projeto mais simples porque estava numa área popular, em volta de casas mais pobres. Fiz como se fosse para um bairro como Copacabana. Quando a gente pode chegar ao outro lado. E, em favelas, não é preciso fazer coisas baratas. Diante disso, acho que a arquitetura pode, sim, ter uma função social.

 

Como é o seu processo criativo? Qual o primeiro passo para o surgimento de uma obra?  

 

Eu sempre faço um texto explicativo, porque ninguém entende de arquitetura. Em geral os meus projetos são mais aprovados pelo texto do que pelo desenho, porque ninguém entende. Isso é o que chamo de conferência do meu trabalho. 

 

O senhor chefia uma equipe, administra um negócio?

 

Minha relação com as pessoas à minha volta é a melhor possível. Eu não sou chefe de nada, eu faço o meu trabalho e meus amigos trabalham comigo, não tem hierarquia. Agora, eu faço sozinho a minha parte porque arquitetura é uma coisa muito pessoal. Quando eu tenho o projeto pronto, desenhado, eu chamo um escritório de fora para resolver. E, com isso, eu divido o meu salário e ajudo os outros. 

 

Então o senhor, um dos arquitetos mais importantes do mundo, não acumula riqueza?

 

Não. Eu teria vergonha de guardar. E, felizmente, na minha família foi sempre assim. Meu nome deveria ser “Ribeiro de Almeida”, sobrenome do meu avô, que veio de Maricá (pequena cidade no estado do Rio). E a casa em que eu morei com ele foi a única coisa que ele nos deixou quando morreu. Uma casa hipotecada.  

 

Brasília é um pólo de turismo associado à arquitetura muito por conta de suas obras. Qual a avaliação que o senhor faz, hoje, sobre o seu trabalho na capital federal?

 

Alguns gostam, está bom. Eu faço o que eu gosto. O perfeito para o homem é fazer o que ele gosta e não o que os outros gostariam que ele fizesse. E Brasília é uma expressão, um caminho.  Você vai a Brasília, pode gostar ou não dos palácios, mas não pode dizer que viu coisa parecida. Pode ter visto até melhor, mas parecida não viu. E para mim o que importa é a surpresa, é fazer diferente, fazer o que gosta.

 

E as curvas de seu trabalho? Recentemente o New York Times comparou as cúpulas do Congresso Nacional aos seios fartos de uma mulher. Faz sentido?

 

Eu guardo tudo o que eu vi e o amor à vida. Não fiz apenas pensando nisso. Fiz pensando em casas, montanhas, mulheres, em tudo. A gente desenha o que está dentro da gente.

 

As curvas de suas obras atraem até skatistas. Tem gente que sonha andar naquele carrinho dentro da cúpula do Congresso Nacional… 

Isso não é possível… Eu fiz um projeto agora de uma pista de skate em Santos (cidade do litoral de São Paulo). São justamente cinco piscinas normais, mas tem uma dedicada ao skate. Eu fiz a idéia geral e, como o assunto é técnico, repassei os dados para uma firma especializada. 

 

Falando de política: o senhor é comunista, um dos últimos comunistas ilustres vivos do mundo…

 

No mundo inteiro, continua a ideia da revolução, de uma sociedade com o povo no poder. O movimento ainda existe, mas não está organizado. Ainda há Cuba. Fidel Castro não é comunista mas é um sujeito que quer defender o país dele, o povo dele, quer a sociedade horizontal.

 

O capitalismo lhe incomoda especialmente neste momento do mundo?

 

A gente nunca pensou que fosse ficar tão difícil. Mas o que existe no momento é o capitalismo decadente, está exorbitante. O (George) Bush é um calhorda, um merda, vai morrer que nem um idiota qualquer. Ele está fazendo essa campanha em todo o mundo à base do racismo. A situação mundial é muito deprimente. Essa busca por petróleo, dinheiro, essa coisa da religião exacerbada… O homem precisa ser útil, modesto e se informar. A gente tem esperança de que a coisa ainda vá mudar, de que olhem para os mais pobres, para a África, para tudo.

 

Que esperança é essa, Oscar? 

 

Acontece o seguinte: existe o inesperado. Quanto mais a gente espera que o mundo caminhe para um lado, surge algo novo. Eu confesso a você que eu ainda acho o comunismo a solução para se organizar uma sociedade decente. Cada um de nós escreve a sua historinha e vai embora. O indivíduo tem a sua importância na sociedade, na sua profissão, mas isso é uma coisa pessoal. Nós estamos aqui na Terra por um minuto, por um sopro. Por isso, devemos lutar por uma vida mais digna. O ser humano que procura ler, se informar, sabe que o homem é fruto da natureza: nasce, cresce, morre e desaparece. Ninguém tem importância. Tem que viver, viver de mãos dadas. O Lenin dizia que 10% de qualidade (de vida) já bastavam ao homem, mas o ser humano vive essa ilusão, brigando sem parar. 

 

Eu queria te agradecer pela entrevista…

 

É foda, né. Que idade você tem? 

 

32.  

 

Ah… as mulheres… Eu tenho 97. 

 

Risos. Oscar, eu te agradeço mais uma vez. Foi um prazer e uma honra.

 

Quando tiver por perto, suba para um café. 

 

Tulio Brandão é jornalista, colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou nove anos no Globo como setorista de meio ambiente e outros três anos no Jornal do Brasil, onde cobriu surf e outros esportes de prancha. Atuou ainda como gerente de Sustentabilidade da Approach Comunicação. Na redação, ganhou dois prêmios Esso, um Grande Prêmio CNT e um Prêmio Abrelpe. 


Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".