Leitura de Onda

Tão perto, tão longe

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Surfistas e ambientalistas debatem as questões da natureza durante o Viva a Mata realizado no Parque do Ibirapuera, São Paulo (SP). Foto: Lucas Conejero.

O surfista é um tipo íntimo das sutilezas da natureza. Reconhece ventos, mudanças de tempo, conhece profundamente os segredos do mar. Contempla o horizonte, deixa o olhar se perder no voo de um biguá e reage diante do primeiro balanço da onda.

 

É um autêntico ser vivo, que interage tanto com o ambiente natural que se esquece de que ele mesmo é um ator que ao mesmo tempo sofre e provoca a degradação ambiental.

 

Mês passado, a SOS Mata Atlântica decidiu discutir de maneira mais contundente a nossa participação nessa história. Promoveu, no evento Viva a Mata, realizado no Parque do Ibirapuera, um debate com o tema “Surf, Sustentabilidade e Gestão Costeira”.

 

Quando recebi o convite para integrar o bate-papo, percebi que eu era um exemplo bem acabado dessa tal proximidade que gera distância. Trabalho com os dois temas – surf e meio ambiente – isoladamente há mais de uma década.

 

Mergulhei no mundo verde como repórter setorista de meio ambiente do jornal O Globo e, quase dez anos mais tarde, saí para montar o núcleo de Sustentabilidade de uma agência de comunicação. O mar azul do surf me é familiar desde os 10 anos.

 

No fim dos anos 90, virei setorista de esportes de ação na redação do Jornal do Brasil. O Waves se tornou uma de minhas casas no início dos anos 2000 e, desde então, me sinto à vontade no site. Mas, lacunas da vida, eu poucas vezes falei sobre os dois canais ao mesmo tempo.

 

Ou era surf, prazer que carrego pela eternidade, ou eram questões ambientais, também valiosas para mim, mas muitas vezes apresentadas em formato de denúncia incompatível com o prazer da onda. A regra – tão perto da natureza, tão longe dela – repete-se pelos line-ups do mundo.

 

No meio do caminho, estava a SOS Mata Atlântica. O evento, idealizado pelo coordenador do Programa Costa Atlântica para a conservação das zonas costeiras, Fábio Motta, tinha exatamente a missão de induzir essa aproximação.

 

A informal roda de conversa foi composta ainda pelo diretor da ONG Ecosurfi, João Malavolta, pelo engenheiro responsável pelas E-boards, Daniel Aranha, pelo surfista de ondas grandes Alemão de Maresias, pelo artista plástico Erick Wilson e pelo público.

 

Ali, no Parque do Ibirapuera, estavam representante depraticamente todas as nuances da relação entre o surfista e a natureza. Malavolta faz um valioso trabalho na Ecosurfi para redefinir o papel do surfista em seu próprio habitat, através de campanhas e ações diretas no litoral. Pois essa relação do homem-surfista com a zona costeira muitas vezes foi determinante para o futuro de pedaços importantes de Mata Atlântica.

 

O surfista deve entender o seu papel de “descobridor de paraísos”. Itacaré, Guarda do Embaú, Maresias e Búzios são apenas uma pequena mostra dos balneários descobertos pelo homem da prancha.

 

Em alguns casos, deixaram de ser pequenas vilas de pescadores para se tornarem destinos turísticos de massa ou de elite, com a paisagem alterada pela especulação imobiliária. Ao perceber a importância que tem nesses paraísos, o surfista pode tentar assumir um papel mais importante na indução de políticas públicas locais que gerem renda e sustentabilidade para essas comunidades, antes que a fúria do progresso prevaleça.

 

Outra nuance de nossa relação com o ambiente é o impacto provocado pelo nosso brinquedo preferido, a prancha. Daniel Aranha, da E-Board, apresentou justamente uma alternativa técnica, com materiais mais limpos e menor desgaste, para reduzir a pegada ecológica do surfista.

 

Todos sabemos, no entanto, que a importante busca do engenheiro por tecnologias menos agressivas ainda não encontra o eco devido no mercado.

 

O surf sempre se vendeu como um esporte ambientalmente limpo, apesar da montanha de resíduos químicos ainda gerada na produção dos foguetes.  Há uma nítida resistência à troca das velhas, sujas e já consagradas técnicas de produção.

 

São gastos, por prancha, pelo método convencional mais antigo, em média, 2 quilos de fibra, 3,5 quilos de poliuretano e 4 quilos de resina. Dos 9,5 quilos utilizados, ficam no equipamento apenas pouco mais de 2,5 quilos.

 

Ou seja, cerca de 73% de perda. O volume, em números absolutos, é enorme. A Association Clean Shaper estimou certa vez que 600 mil pranchas sejam produzidas anualmente no mundo com esse método.

 

Conta feita, o surfe joga no meio ambiente, por ano, 4,2 mil toneladas de produtos altamente tóxicos. Isso sem contabilizar as pranchas usadas, que depois de um tempo também são descartadas.

 

E, por último, mas também muito importante, há a nuance do surfista vítima do saneamento criminoso. O Brasil tem o assustador selo de país com praias voltadas para mar aberto impróprias ao banho. Um escárnio. Neste cenário, os surfistas ficam com os ônus: micoses pelo corpo, hepatite e outras doenças de veiculação hídrica típicas de áreas não saneadas.

 

São Conrado, neste sentido, é um case às avessas. Há uma década, os administradores do poder público gastam saliva em discursos de inauguração de obras de saneamento absurdas, que jamais funcionaram no bairro. O crime é tão latente que a qualidade da água piorou significativamente depois da inauguração de uma estação de tratamento de esgoto local.

 

O Pontão do Leblon, que fica no bairro ao lado, onde cresci, está um pouco melhor que o pico vizinho, mas nada que valha elogio ou menção honrosa. O esgoto ainda desce solto do Rio Rainha quando abrem a comporta do canal da Avenida Visconde de Albuquerque.

 

No passado, sequer havia comporta. Como, no alto de meus 15 anos eu vivia mais tempo dentro da água que em casa, não escapei de uma hepatite. Foram três meses de cama. Sobrevivi para contar a história e, pelo resto da vida, gritar contra esses absurdos.

 

Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".