Leitura de Onda

Rio em dois tempos

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O Rio de Janeiro oferece calor, paisagens fascinantes e muita diversão, mas tem seu potencial ameaçado pelo lado B. Foto: Fábio Minduim.

O Rio de Janeiro tem caixa para conquistar o mundo. De longe, do céu cinza e frio cortante de cidades como Londres, é impossível não se encantar por uma cidade que oferece calor, um raro conjunto cênico formado por mar, montanha e floresta, o espírito leve do carioca e a velha caipirinha. É clichê, mas é bom. Cariocas poderiam tranquilamente ter inventado o “joie de vivre” – até porque já se apropriaram há tempos dessa cultura.

O gigante potencial de nossa charmosa cidade olímpica vive, entretanto, ameaçado pelo lado B da história: a insistente e mortal cultura de levar vantagem, corrupção, administradores incompetentes, turismo amador, problemas de infraestrutura, criminalidade, etc.

Não reproduzirei aqui aquelas imprecisas e vazias listas que circulam nas mídias sociais de motivos pelos quais se ama ou se odeia o Rio. Prefiro outro exercício, o de imaginar o percurso de dois turistas entre o aeroporto e o hotel – muitas vezes determinante para a impressão de uma cidade – ao chegarem ao Rio.

Primeiro, o azarado. John aterrissa no voo da British. Havaianas, bermudão, ele tenta sentir a primeira brisa de mar carioca, mas antes encontra uma enorme fila de imigração, reflexo da chamada Operação Padrão dos servidores.

Agora sim, ele pensa, ao ser chamado por um taxista, que conversa com um policial. Ao entrar no carro, ouve: só viajo no tiro, R$ 130 na mão. John tira o maço de reais mal trocados no aeroporto e paga, entre contrariado e desconfiado com essa história de tiro.

No caminho, a brisa pela qual John tanto esperava invade o carro, mas com doses cavalares de esgoto. É o cheiro do Canal do Fundão, ecossistema alvo de pesados investimentos de saneamento do Estado. Tudo no ralo. Os indicadores ambientais seguem no vermelho.

Ao lado, ele nota uma estrutura toda iluminada, que mais parece uma discoteca. O taxista garante ser uma estação de esgoto com o estranho nome de Alegria, diante de toda aquela triste contaminação da Baía de Guanabara.

O táxi chega enfim ao Elevado Paulo de Frontin, e para diante de um carro fechando bruscamente a passagem dos outros. John vê o primeiro bonde sem trilhos de sua vida. São bandidos, que promovem um arrastão à sua frente e, por sorte (mesmo John pode ter sorte às vezes), ignoram o táxi na fila de vítimas.

John alcança a Zona Sul já com o espírito atormentado e, acima com ele, chega uma cumulus nimbus pesadíssima. O primeiro espetáculo da natureza a que o inglês tem direito é uma tempestade de raios, que alaga as ruas em exatos cinco minutos. Passado o caos do trânsito, John chega ao hotel, mas falta eletricidade. Nove andares de escada e calor na cama.

Agora, Susie, a descolada. A garota chega no mesmo voo de John, mas um amigo de viagem, carioca da gema, faz questão de buscá-la no aeroporto. No caminho, ele conta a história da descoberta do Rio pelas portas da Baía de Guanabara, fala sobre as favelas com otimismo e chega ao tranquilo hostel em Ipanema antes do arrastão, da tempestade e do trânsito.

Quando a chuva começa, ela já está posicionada no terraço coberto do prédio, com vista para a Lagoa, com uma taça de um bom espumante brasileiro nas mãos, para brindar à natureza com outro amigo, que lhe explica a importância da chuva como purificadora para as religiões africanas existentes no Brasil. Quando a taça acabar, ela vai botar um biquíni e correr para a área descoberta, atrás de um banho de chuva energético e transformador.

Notem, aqui, que a viagem do azarado é um exemplo impossível de experiência mal sucedida, embora seja possível. E que a viagem da descolada é uma mostra clara de como, em muitos casos, turistas dependem da boa vontade dos cariocas para ter uma boa experiência na cidade.

Está aí o ponto: para se consolidar como destino internacional premium, para disputar a preferência do mundo com Paris e Nova York e, eventualmente, desbancá-los, o Rio não pode depender apenas de sua cultura cordial e receptiva. Um bom lugar para se visitar tem estrutura pronta para receber, sem sustos, qualquer inocente turista desavisado.

Há muito trabalho pela frente. É hora de esquecermos um pouco a cultura do jeitinho gente boa e botarmos a mão na massa: qualificar o turismo, cobrar definitivamente resultados na área do saneamento, bloquear a cultura da corrupção, cobrar infraestrutura urgente.

Na ótima coluna “Panorama Carioca”, do Globo, assinada por Márcia Vieira neste sábado, o título aponta o caminho: “Turismo é para profissional.” O texto revela que, em 2012 (último ano apurado), o Rio já recebeu oito milhões de turistas (um milhão de estrangeiros).  A jornalista entrevista a coordenadora adjunta da pós-graduação em Turismo da UFRJ, que resume toda a angústia carioca num depoimento:  “O Rio virou uma megacidade. Não é mais aquele lugar bacaninha onde as coisas saem erradas e o turista acha engraçado.”

Aos surfistas, peço desculpas por gastar o texto sem falar de ondas. O Rio merece.

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".