Leitura de Onda

O portal

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Como ninguém sabe o que realmente passa dentro da cabeça de Kelly Slater, Tulio Brandão imagina para a gente. Foto: Testemale / Quiksilver.

Craig Schwartz é o arquivista de um escritório localizado no bizarro sétimo andar e meio de um prédio, onde quem não é anão anda curvado. Um dia, por trás de um armário, ele descobre um portal que o leva para dentro da mente do ator John Malkovich.

 

A história, do roteirista Charlie Kaufman, transformou-se no genial  “Quero ser John Malkovich”, dirigido por Spike Jonze e indicado a vários prêmios Oscar e Globo de Ouro.

 

Outro dia, tive um sonho a la Kaufman: dava um rolé nas velhas dunas de Cabo Frio quando vi uma porta enterrada na areia. Era de madeira, e estava empenada pelo clima quase semi-árido da região. Num estalo, ela se abriu: entrei, desci degraus de uma escada suja de areia e dei de cara com a mente de Kelly Slater. 

 

Sim, eu tinha entrado no cérebro do maior surfista do mundo. E olha que o cara nem é o meu maior ídolo. Kelly estava numa festa, cercado de gatas, e todo mundo circulava ao seu redor. Serotonina pura, anti-depressivo perfeito. É como estar no centro do mundo.

 

Os baba-ovos de sempre já começavam a me fazer sentir saudades da vida de anônimo observador de costumes quando o cara decidiu sair da festa com a Gisele Bundshen. É difícil resistir a essa vida mundana de melhor do mundo.

 

No dia seguinte, não teve café na cama nem replay para a gata. O cara já acordou pensando nos adversários. Enfilerou-os, um a um, quase como se percebesse que tinha um jornalista vendo tudo. E desandou a falar para si mesmo: Jordy é moderno, forte e capaz de se adaptar a várias condições de surf apesar do peso, mas sentiu a pressão da minha experiência ano passado. Teria sido mais difícil competir se Mick ou até mesmo Joel estivesse com a vantagem dele. Consegui fazer com que Jordy se sentisse honrado em disputar comigo o caneco, o que colocou uma âncora na prancha dele. Mas, quando eu sair, Jordy deve partir com tudo para um título imediato.

 

Taj, ah o Taj. Pega muito, mas está no meu bolso. Ele sabe que eu sei que posso vencê-lo, e isso é determinante para achatar a confiança dele. Quando o vejo socando a prancha após as derrotas, percebo como a disputa comigo o incomoda. Ele só ganha um título mundial se aprender a se equilibrar em situações de pressão. E, agora, é a nova geração que nos joga contra a parede. Mas não me engano: Taj ainda pode vencer qualquer um, em qualquer lugar.

 

Dane. Será que ele sabe que é o melhor do mundo? É um dos únicos do tour que você não sabe o que vai fazer na manobra seguinte: pode fazer tudo, ou não fazer nada. Ainda não entendi se ele quer mesmo ser campeão mundial. Ainda não entendi se ele quer ser Pelé ou Garrincha (comecei a desconfiar que era um sonho… Kelly não daria a mínima para o nosso Mané).

 

Joel é o estilo. Ele não tem a minha estrela, mas surfa mais bonito que eu. É o candidato mais forte ao título deste ano, entre outras coisas, porque eu já tenho os meus 10 canecos no bolso e ele não tem nenhum. E já deu a sua cota de contusões para o destino. Se começar bem, nas duas etapas em casa, vai ser difícil pará-lo. Isso já aconteceu antes, mas ele se contundiu. Só preciso dizer mais uma coisa: ele surfa mais bonito, mas eu surfo melhor. Bem melhor

 

Mick vencerá sempre que alguém tropeçar. Ele está pronto para dar o bote, sempre. Eu, os juízes e a torcida do Flamengo (de novo, desconfiei de sonho: afinal, seria Kelly torcedor do Mengão?) sabemos o que o aussie vai fazer na onda, mas ele faz tudo isso muito bem. Foi campeão comigo na disputa, quando eu estava com o pé no freio.

 

O Owen chegou para vingar os goofies. Nós – eu e todos os regulares de quem eu já falei – sabemos disso. Se deixarem, ele leva o caneco para casa ainda este ano. Vai ser campeão mundial. É moderno, atirado, vertical e tem sangue nos olhos e faca nos dentes como eu.

 

Os brazzas mostraram finalmente a força. No ano mais difícil da divisão de acesso, os caras conseguiram emplacar quatro surfistas na elite. Isso é sólido, um sinal incontestável de evolução. Os goofies Jadson e Heitor surgem de novo como potência nas ondas menores, enquanto evoluem perigosamente nos canudos mais sólidos. Vão vencer no tour.

 

Adriano é um bom garoto. A briga que tivemos já foi esquecida. Está sendo mal julgado pela ASP, e seu surf, apesar das manobras já conhecidas, merece notas mais altas. São movimentos radicais, fluidos e rápidos. Tem surf para brigar sempre pelo pódio, por vitórias.

 

Raoni e Alejo completam um dos quadros de brasileiros mais qualificados da história da ASP. Raoni era um dos surfistas mais talentosos do mundo, e agora volta de onde não deveria ter saído. E Alejo aparece para alimentar seus parceiros com os truques de um garoto.

 

A voz de Kelly estava entrecortada, meio gutural. Quando Kelly começou a despejar elogios incontidos aos brasileiros, encaixei a última peça: eu estava mesmo num sonho muito louco.

 

Antes que eu pudesse extrair a informação que mais me interessava, o despertador tocou. Acordei aliviado por voltar à confortável condição de humano repleto de falhas, mas sem saber se ele vai se aposentar ou continuar competindo na temporada 2011.

 

Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".