Leitura de Onda

O melhor “cutback” de Wilko

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Uma aparentemente desimportante batida de finalização de cutback no fim da onda, na semifinal contra Michel Bourez, é o retrato perfeito da cada vez mais visível gana de vencer de Matt Wilkinson. Foto: Reprodução.

 

Uma aparentemente desimportante batida de finalização de cutback no fim da onda, na semifinal contra Michel Bourez, é o retrato perfeito da cada vez mais visível gana de vencer de Matt Wilkinson, campeão de Fiji e novo líder do circuito mundial. Ele finaliza de maneira surpreendentemente explosiva um movimento de retorno à melhor parte da onda – a metáfora para a sua volta ao topo. A vontade do australiano de Copacabana está em todos os lugares, até nos movimentos não percebidos.

Ao retomar o posto depois da odisseia de 2016, o australiano manda um recado definitivo a quem acreditava que seu brilho no ano passado era fugaz. A performance em Fiji, dispensando todas as repescagens, com um surfe sólido de arcos, batidas fortes e colocação nos tubos, é também uma confirmação (mais uma) da evolução de um surfista que, até alguns anos atrás, tinha fragilidade no surfe de frente para a onda. Agora, em Fiji, depois da segunda final seguida, será apontado como “big player”.

A vitória é um recado para quem acha que as coisas chegam prontas, estabelecidas. Uma lição para quem ainda acredita que os melhores serão sempre os melhores.

Wilko chega ao topo num evento-carnificina de favoritos. Na fase 3 da prova, aquela cuja derrota rende um amargo 13o posto, o mundo viu uma revolta sem precedentes dos camisas azuis, cor da lycra de quem está em desvantagem no seed. Foram eliminados nada menos que oito dos 12 surfistas que, ao menos no papel, eram os favoritos – alguns deles eram barbadas também pela especialidade na onda.

Caíram, em série, que nem dominó, nomes como Owen Wright, Gabriel Medina, Mick Fanning, John John Florence, Jordy Smith, Kelly Slater e Adriano de Souza. Uma parte deles, é importante notar, foi obrigada a surfar no pior dia da prova, de longe.

Com tantos tombos de gigantes, surgiu espaço para o brilho de nomes como o estreante Connor O’Leary, vice-campeão. No início do ano, mencionei o nome dele como uma das boas novidades australianas no tour, mas dei mais destaque ao garoto Ethan Ewing, garoto com surfe afiado. A elite tem dessas coisas: prevalece, por enquanto, o consistente conjunto de talento, técnica e capacidade competitiva de O’Leary, enquando Ewing se afunda pelas tabelas, na rabeira do ranking.

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Wilko chega ao topo num evento-carnificina de favoritos. Foto: WSL / Ed Sloane.

 
A prova da consistência é que, apesar de o surfista não ter alcançado a soma de 16 pontos sequer uma vez durante o evento, dispensou as duas repescagens e eliminou potências como o anfitrião Kelly Slater e o mestre Joel Parkinson, além de ter passado pela surpresa Joan Duru, no caminho. Na final, deu muito trabalho a Wilko.

Duru, aliás, foi outro inesperado destaque do evento. Encontrou um caminho sólido que combinava manobras potentes e tubos sempre nas melhores ondas da bateria. Estava nitidamente conectado ao mar. Poderia ter vencido O’Leary.

Solidez é a expressão certa também para Michel Bourez, que novamente brilhou em variadas condições. Sua atrasada com o auxílio luxuoso do pé de trás entra, desde já, para a retrospectiva das melhores imagens da temporada. O milagre de Bourez se deu justamente na bateria em que Miguel Pupo fazia, de longe, sua melhor performance do ano. O brasileiro, com a segunda maior média da fase 1, caiu para a repescagem.

A semifinal entre Bourez e Wilko foi mais que apertada – se o taitiano tivesse vencido ninguém reclamaria. Minha primeira impressão foi de vitória clara do Bourez. Depois, diante do replay, tive dúvida. Não queria estar na pele dos juízes naquela bateria.

Joel Parkinson, o outro semifinalista, também surfou bem, embora tenha atravessado as duas repescagens e, como a maiores dos surfistas, não tenha alcançado somas tão significativas – a maior foi de pouco mais de 15 pontos, na bateria da fase 3 contra o forte Jeremy Flores. Parko, silenciosamente, vem construindo sua manutenção entre os primeiros do ranking. Se fizer bonito na próxima etapa, em J-Bay, onde é notadamente um especialista, avança definitivamente para a disputa de título.

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Italo Ferreira, de volta às competições depois de três etapas ausente por contusão, fez um excelente retorno. Foto: © WSL / Cestari.

 
Os brasileiros ficaram longe das finais. Italo Ferreira e Ian Gouveia, os dois melhores na prova, terminaram na nona colocação. Italo, de volta às competições depois de três etapas ausente por contusão, fez um excelente retorno. Provou que está tecnicamente na ponta dos cascos e sem limitações físicas aparentes. Fez grandes baterias, como a que eliminou precocemente o bicampeão da prova Medina.

Ian, mesmo com resultados anteriores insuficientes, já vinha agradando e vendendo caro suas derrotas. Em Fiji, sentiu-se como no quintal de casa – graças às inúmeras temporadas havaianas, que lhe moldaram a técnica de tubos. Seu surfe, de um modo geral, ainda tem espaço para a lapidação necessária à elite – e é importante que se tenha consciência disso, vide a evolução de Wilko. Mas, desde já, Ian desponta com boa técnica e excelente espírito de competição. A vitória sobre Owen foi memorável.
 
A derrota precoce do campeão de 2014, Medina, acendeu o sinal vermelho na torcida e nos jornalistas. Surgem, nas redes e nas praias, inúmeras teorias para explicar a má fase do surfista de Maresias. O que ocorre é que o histórico dele, com vitórias inesquecíveis o primeiro título mundial de um surfista brasileiro, não dá margem a um período de derrotas sucessivas sem que o mundo caia sobre sua cabeça.

Como diz um amigo, o cara fica numa enrascada: se ganha, acham que ele é bestial; se perde, uma besta. No mundo real, sabemos que não é uma coisa nem outra. Por isso, pretendo escrever sobre o tema na próxima coluna.

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Ian Gouveia, mesmo com resultados anteriores insuficientes, já vinha agradando e vendendo caro suas derrotas. Foto: © WSL / Cestari.

 
A próxima etapa será em J-Bay. Alguém ouviu falar de Mick Fanning este ano? Pois é, não há lugar mais óbvio para a recuperação dele. Num ano que começa a se apresentar disputado – depois de um início dominado por praticamente um só surfista – ter o tricampeão vivo é um bônus e tanto.

É bacana notar também que todos os surfistas que alcançaram a casa dos 26 mil pontos na temporada – Wilko, John John, Jordy, Adriano e Owen – surfam muito bem na África, cada um de seu jeito. Espetáculo garantido.

Nota: Não pretendo voltar ao assunto (até porque mais gente escreveu sobre o tema) mas queria fazer um último comentário sobre a história de Slater, publicada em minha última coluna. Fiquei bastante surpreso com as reações, vindas de fóruns e até de jornalistas que sempre respeitei, em relação à impossibilidade ética de o americano disputar uma prova em que era sócio, patrocinador e um dos favoritos. O surfe precisa decidir se é um esporte pequeno, um encontro entre amigos, em que iniciativas como essa são naturais (um bom exemplo, lembrado pelo meu primo, é o evento de bodyboard organizado pelo Mike Stewart, em que ele compete e banca) ou um esporte grande, como deseja e anuncia a WSL. Boa parte da polêmica se deu por causa dessa diferença de visão – são duas realidades distintas, com exigências éticas distintas. Achei sintomático que a expressão de Kelly Slater estivesse muito mais tranquila e serena depois que foi derrotado precocemente na prova. Justo ele, o maior competidor de todos os tempos, tranquilo com a derrota no seu playground preferido. Segue o jogo.   

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".