Leitura de Onda

O fim de Macunaíma

0
1400x884

Adriano de Souza , Billabong Pipe Masters 2015, Pipeline, Hawaii. Foto: © WSL / Kirstin.

Macunaíma, personagem-título do romance de Mário de Andrade, é preguiçoso, boa vida, sedutor, sem caráter. Chamado de “herói de nossa gente”, acabou se transformando numa alegoria para representar o povo brasileiro.  

O velho clichê do surfista vagabundo, que é bom de onda mas não vai a lugar algum, vive  largado na praia, é Macunaíma em estado puro.

No fatídico 17 de dezembro de 2015, em plena areia de Pipeline, Adriano de Souza matou Macunaíma.

Pelo menos no universo do surfe, o mito do herói-malandro foi definitivamente esmagado pela fúria de um homem comum, nascido na dificuldade de uma favela do Guarujá, filho de estivador, que encarnou um modelo melhor de brasileiro, menos orgulhoso de suas virtudes e mais consciente de seu trabalho.

Um tipo muito talentoso, mas, antes de tudo, obstinado, perseverante, forte.

Adriano é a redenção do povo brasileiro, é a prova de que somos mais vivos e disciplinados do que dizem que somos – ou do que achamos que somos.

Seu título é o triunfo da vontade, do desejo irrefreável, do surfista que tem orgulho de suar a camisa, do brasileiro que comemora pequenas conquistas. Foram centenas de pedras retiradas do caminho, quase sempre sem a ajuda do mundo de eleitos que o cercava e, por vezes, o repelia. 

Mas ninguém quis mais o título mundial mais que ele. Jamais.

É vero que, ano passado, na conquista inédita de Gabriel Medina, a imagem do malandro no surfe já tinha tomado uma estocada certeira. O garoto de Maresias era mais um a simbolizar uma vida de privações em nome de um sonho, um objetivo final. 

Mas Gabriel, além do esforço, sempre foi visto como um freak, um fenômeno capaz de conquistar muitos títulos mundiais – antes mesmo de levantar o primeiro caneco.

Adriano não compartilhou o mesmo mundo. O orgulho da comunidade de Santo Antônio jogou contra a banca praticamente durante toda a sua vida na elite. 

Em 2006, ainda garoto, um ano depois de se qualificar pelo WQS batendo todos os recordes da divisão, ele chegou à elite e, de cara, alcançou a semifinal em Snapper Rocks. Início promissor, mas nas etapas seguintes ele esbarraria na falta de experiência em ondas mais agudas e na leitura crítica que o universo do surfe fazia de seu estilo.

Só voltaria a fazer semifinal mais de dois anos depois, curiosamente em Fiji, quando perdeu para CJ Hobgood. A partir daí, emplacou outros bons resultados e conseguiu uma constância que o manteve sempre entre os 10 primeiros (à exceção de 2013, quando ficou em 13o), alcançando em três temporadas o quinto posto. Até o fim de 2014, tinha chegado a liderança por duas vezes (2011 e 2013, depois da etapa brasileira). Sentiu o gostinho de estar no topo.

Na elite, Adriano entendeu que teria que mostrar suas garras se quisesse se manter bem no jogo. Passou a repetir o mantra: “Não preciso ser melhor que ninguém para vencer, preciso ser melhor durante os 30 minutos de bateria”.

Adotou uma postura dura, agressiva, mas absolutamente lícita. Não dava espaço a seus adversários dentro d’água, disputava as ondas como quem briga por um prato de comida. Entendia, com razão, que aquilo era parte do jogo. Adriano elevou o padrão de tática e competitividade a níveis jamais vistos num esporte até então acostumado apenas com supostos gentlemen da cultura saxã.

Adriano melou com o chá das 5h, com o encontro de surfistas “cool” de origem inglesa. Chegou com a faca nos dentes, sem tempo para fazer amigos e curtir a vida de surfista da elite. E fez mais: ensinou a lição aos garotos da tempestade brasileira.

As pedras, claro, começaram a surgir no caminho do garoto do Guarujá.

Ganhou desafetos, ouviu críticas públicas de gente como Kelly Slater, mas não tremeu. Manteve os pés no chão e a cabeça ereta, apontada para seu sonho.

O ataque alcançou até diferenças culturais. Adriano foi o primeiro surfista mais frequentemente criticado pelas comemorações das ondas surfadas. Fizeram até clipe de seus socos no ar e uma enquete sobre o “claiming”. Questionado se pararia com o hábito que incomodava os gringos afeitos a gestos contidos, ele disse apenas que se expressava de maneira sincera: “Não deixarei de fazer isso. Este sou eu.”

Deixou-os sem argumento. Em pouco tempo, australianos e americanos já estavam de punhos cerrados, a tentar levantar ondas medianas. Mas sem a paixão de Adriano.

Sua fúria competitiva em baterias de três surfistas era notória. Em 2012, uma disputa dura com o americano CJ Hobgood, em Fiji, foi o estopim de mais uma crise no caminho do brasileiro. Kelly comprou a briga do conterrâneo da Flórida e detonou a postura de Adriano. Foi lamentavelmente injusto.

No fim da temporada, a entidade máxima do surfe anunciou uma mudança do regulamento, de modo a criar um sistema de prioridades em baterias de três. Embora tenha surgido para efetivamente organizar a disputa (e de fato ter melhorado o esporte), na ocasião pareceu ser uma lei “sossega-Adriano”. Ele, claro, não sossegou. Continuou ganhando as primeiras prioridades em todas as baterias.

Os resultados e a sucessão de obstáculos sugeriam, mesmo ao observador mais atento, que Adriano entraria para a história como um grande representante do surfe brasileiro, um surfista constante – o primeiro capaz de se manter tantos anos entre os melhores do mundo – mas não um campeão mundial. 

Adriano tinha outros planos. Na sua mente indestrutível, a rota já estava traçada. Em anos distintos, ele fez tudo o que estava a seu alcance para chegar ao destino: morou na Califórnia para aprimorar o inglês e ficar perto do mercado de surfe, trocou de shaper (passou a usar Al Merrick), bateu na porta de Jamie O’brien, no Havaí, para pedir um internato em Pipe, buscou o patrocínio de marcas brasileiras para se manter na elite (subvertendo a lógica dos tops) e passou a trabalhar com o médico Marcelo Baboghluian (que também atende o campeão da Triple Crown, Gabriel, o estreante do ano, Ítalo, e o campeão do WQS, Caio Ibelli). Mas, mais que tudo, enfrentou de peito aberto toda a desconfiança em torno de seu nome.

No fim de 2014, curiosamente quase da mesma forma que Gabriel no ano anterior, Adriano sofreu uma séria contusão. Também como o rival de casa, passou as férias no estaleiro, lutando com todas as forças para ficar bom a tempo de Snapper.

O resto da história, vocês já conhecem.

Adriano foi dominante em 2015. Não precisou, para isso, de scores assombrosos. Fez o que estava em sua cabeça: ser apenas melhor que seus adversários durante as baterias. Sua média de pontuação anual, 13,53, a menor entre entre os top 5, revela ao mesmo tempo essa despreocupação com o show e um problema com o qual ele lutou a vida inteira, de minha perspectiva: um ligeiro achatamento nas notas.

Não, não se trata de conspiração para eliminá-lo, isso não existe no esporte. É apenas de um olhar, na minha opinião, excessivamente crítico para suas performances. Como se suas notas fossem um pouco impregnadas pelo olhar de que ele sempre foi alvo no circuito. É preciso dizer que o julgamento dos confrontos costumava ser justo, porque o parâmetro acabava sendo a diferença entre os surfistas, e Adriano prevalecia.

Uma imagem, produzida pelo craque das fotos Bruno Lemos, talvez sintetize essa visão crítica. Mostra os integrantes da bancada de comentaristas do Pipe Master olhando para a areia no momento em que o brasileiro era carregado nas costas por uma multidão de brasileiros, logo depois de conquistar o título mundial. É melhor não descrever. A imagem diz muita coisa.  

960x538

O que estariam pensando? Foto: Bruno Lemos.

Mas Adriano é mais forte que os críticos. Dobrou-os, ou vai dobrá-los.

Dentro d’água, Mick Fanning, o favorito ao título, não resistiu. Nem os outros candidatos.

Na areia, Kelly, seu eterno rival, talvez o adversário que mais tenha sentido o poder do espírito do brasileiro, seu crítico em diversas oportunidades, rendeu-se:

“Não há substituto para trabalho duro e vontade. Está provado que talento natural, por si só, muitas vezes, faz mal a grandes homens. Há apenas um caminho para ganhar um título mundial, e este homem, desta vez, descobriu um jeito de estar um passo à frente do resto de nós. Não há ninguém que dedique mais paixão ou aplicação ou vontade para gastar milhas ou semanas extras no caminho da vitória. Parabéns por ter alcançado a sua meta de vida hoje, amigo”.

No universo sensível dos fóruns de surfe da web, sobretudo os de sites estrangeiros, muitos dos velhos críticos, escondidos em pseudônimos já famosos, curvaram-se à dedicação, à humildade e ao esforço desse enorme surfista.

Troféu na mão, Adriano é um novo homem, um novo surfista. O talentoso e dedicado atleta, que já tinha um dos melhores bottom-turns e um dos mais bem desenhados surfes de borda do mundo, agora surfa sem um caminhão de pedra nas costas. Arrancou a fórceps o peso de um sonho, de uma obrigação de menino.

O primeiro indício de um novo Adriano foi visto na final de Pipeline. O mar estava difícil, é certo, mas ele derrotou o melhor surfista do evento e vencedor da tríplice coroa havaiana, Gabriel, com um surfe relaxado, bem diferente da abordagem excessivamente compromissada vista em algumas etapas do ano.

Pipeline injetou em Adriano uma mega dose de autoconfiança. Dessas que transformam um sujeito. É um mistério a reação que esse remédio provocará no mais novo campeão mundial de surfe. Pode resultar num relaxamento natural. Ou melhor: pode servir de insumo para o surgimento de um verdadeiro monstro competitivo, melhor, mais leve e mais solto do que sempre. O tempo dirá.

Passaremos a noite da virada com dois títulos mundiais no bolso, com a certeza de que muitos outros virão. Um ano novo em folha para todos nós e o surfe brasileiro.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".