Leitura de Onda

O drible de Medina

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Gabriel Medina, novo fenômeno do surf brasileiro, comemora vitória no Rip Curl Pro Search 2011 em San Francisco, Califórnia (EUA). Foto: © ASP / Kirstin.

A performance fora da curva é um detalhe. Gabriel Medina mostrou, na etapa de São Francisco, um atributo restrito a uma lista seleta de surfistas, liderada pelo 11 vezes campeão Kelly Slater: a capacidade de decodificar mensagens, de driblar armadilhas de julgamento, de surpreender para alcançar pontuações vencedoras.

 

Depois do massacre da França, quando Medina exibiu um luxuoso arsenal de manobras aéreas e foi recompensado com inúmeras notas superiores a 9, os juízes, como esperado, fizeram um sutil ajuste na pontuação dos aerialistas, para trazer de volta ao jogo as velhas estrelas.

 

E foi justamente numa dessas janelas abertas pelo julgamento que o floater, quem diria, o tão criticado floater, deu o 11o título mundial a Slater. Do outro lado da disputa, Medina e Gabriel Pupo se contorciam em manobras aéreas de

Kelly Slater comemora título mundial duas vezes numa mesma etapa por conta de erro de cálculo da ASP. Foto: © ASP / Kirstin.

alta dificuldade – bem mais complexas que o aéreo básico de Owen Wright no Rio – mas não convenciam os juízes.

 

Medina deu a sorte de a bateria do título, do round 4, não ser eliminatória. Do contrário, estaria fora do evento. Na repescagem, passou pelo bom Matt Wilkinson e, nas quartas, lá estava novamente Slater, agora refastelado com o título, pronto para enfrentar um garoto que começa a assombrar do mesmo modo que ele no início de sua carreira.

 

O americano perdeu de novo. Ele anda incomodado com os brasileiros. Foi derrotado pela terceira vez seguida para um de nossos surfistas. Em entrevista após a derrota, Slater reconheceu o talento de Medina e companhia com o velho discurso de que são todos excelentes surfistas, em beach break. Uma mensagem batida, com prazo de validade vencido.

 

O campeão desafiou-os a competir contra ele em Pipeline ou Jeffrey´s Bay. Esqueceu-se, ao fazer o comentário, que Adriano de Souza derrotou-o entocado nos tubos do melhor mar do ano, em Portugal, e que ele este ano desprezou J-Bay por um punhado de ondas em Fiji.

 

Medina seguiu caminho similar ao da França, e despachou Taylor Knox, que vem em boa fase, na semifinal, com seus aéreos mortais. A diferença não foi tão grande quanto das últimas baterias contra o americano, que é o surfista mais velho do tour: “apenas” 3 pontos.

 

Na final, ele encontrou um obstáculo aparentemente mais complexo: Joel Parkinson em forma, louco para voltar a vencer. Contra os arcos bem executados do australiano, ali, naquela final, talvez os aéreos mais contorcidos do planeta não fossem suficientes.

 

Pois aí entra a diferença do surfista que decodifica naturalmente mensagens, que dribla os obstáculos do julgamento. Medina venceu em duas ondas surfadas de backside, com manobras que os bons surfistas dos anos 80 já sabiam executar: pauladas e rasgadas potentes.

 

Os juízes foram pegos no contrapé e tascaram-lhe um 7,5 e um 9, deixando um atordoado Parko em situação desesperadora. No palanque, o australiano usou o microfone para ser justo com Medina. “É provavelmente um dos surfistas mais talentosos que já vi”.

A segunda vitória de Medina o consolida como o novo candidato real a gênio do esporte. Um bom termômetro é o que os sites especializados da Austrália e dos Estados Unidos, muitas vezes reticentes, andam dizendo do garoto.

 

Fala aí, Chris Binns, da Australian Surfing Life: “O garoto de 17 anos do Brasil é verdadeiramente o futuro. Enquanto Mick Fanning e Joel Parkinson conquistaram vitórias como convidados aos 18 anos e Kelly conquistou seu primeiro título aos 20, Gabriel explodiu no cenário do surf e venceu dois dos quatro eventos que já disputou (sem contar Bells, em que surfou como convidado)”.

O texto segue com uma comparação corajosa: “Você ouviu sussurrarem online que ondas grandes podem ser uma fraqueza (de Gabriel), mas será um tolo se acreditar nisso. Houve um tempo em que as mesmas críticas eram feitas a um jovem atirador de Cocoa Beach. Onze títulos e um Eddie depois, ninguém no esporte ousaria dizer algo similar”.

A vitória também posiciona o Brasil como potência definitiva do esporte. Foi o país que mais venceu no ano – quatro vitórias: duas de Mineiro e duas de Medina. Teve, em quase todas as etapas, surfistas em destaque.

 

Alejo Muniz, que chegou ao pódio mais uma vez este ano e por pouco não alcança a final, vem surfando e competindo magistralmente. Ainda está na briga pelo título de “estreante do ano” da ASP com Julian Wilson. Para chegar lá, tem que torcer por uma derrota do australiano nas primeiras fases de Pipeline e fazer um bom resultado.

 

De novo, um site estrangeiro se rende. Diz o texto de Todd Prodanovich, da Surfer: “Correndo o risco de ser chamado de Capitão Óbvio, vou adiante para dizer que este é o ano em que a insurgência brasileira amadureceu para se tornar uma força legítima. Os garotos têm cavado um nicho próprio, enquanto Adriano continua a ser um vencedor potencial de eventos em qualquer condição. Graças a Adriano, Miguel Pupo e Gabriel Medina, a bandeira brasileira tremulou no pódio nos últimos quatro principais eventos do ano (contando com o Prime O´Neill Coldwater Classic, vencido por Pupo)”.

Noves fora a farra brasileira, a etapa de São Francisco jamais será esquecida por ter sido palco do assustador erro de conta da ASP, que depõe contra a entidade e os surfistas em geral.

 

A seguinte cena se passou numa redação carioca: o editor, entre incrédulo e excitado, conta ao responsável pela primeira página do jornal a bizarra história do erro que fez com que a entidade tirasse de Kelly Slater um caneco já oferecido. Pensou em chamar a matéria com o título “surfistas erram na conta”. O título seria preciso para a ocasião, mas reforçaria um estereótipo difícil de desgrudar dos homens das pranchas.

 

Este é só o mais inocente dos danos gerados pelo erro da ASP. A entidade se viu forçada, na sequência do evento, a valorizar especialmente o surf do americano para evitar o pior. Fiquei curioso para saber se os dirigentes chegaram a tirar o caneco da mão do surfista ou simplesmente lhe avisaram do confisco. Quando ele venceu a dupla brasileira e retomou o título, nenhum troféu apareceu na praia. Foi um título sem caneco.

 

A ASP fez bem em correr para se corrigir. Esconder a falha poderia ter sido fatal. Mas, se é culpa do sistema – ou de quem fez o sistema – não importa. Isso não pode acontecer.

 

No fim, foi uma pena para Slater, para o surf e para o público que um título tão importante e histórico tenha sido conquistado desta forma. O erro sempre repercutirá mais que o caneco.

 

Sorte da entidade que, mais uma vez, Medina apareceu para dar nova vida ao evento e desafiar novamente o agora 11 vezes campeão do mundo. O que acontecerá em 2012?

 

Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

 

 

 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".