Leitura de Onda

O dia da marmota

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Kelly Slater decola sem maiores dificuldades durante a primeira fase do Quiksilver Pro 2011. Foto: © ASP / Kirstin.

Parece o “dia da marmota” de Feitiço do Tempo. No filme, Bill Murray é um repórter escalado para cobrir a data festiva. Nas manhãs seguintes, inexplicavelmente, ele acorda preso exatamente aos mesmos acontecimentos do dia da marmota, como se os dias fossem uma repetição, numa espécie de time loop.

 

Na vida real, Kelly Slater parece um surfista preso a um dia da marmota muito particular e confortável. Ele acorda todos os dias e vence, há muitos anos. Quem pensou que fosse se livrar do feitiço do bruxo careca em 2011 se contorceu todo ao vê-lo dias atrás em forma esplêndida nas águas de Snapper Rocks, na primeira fase do Quiksilver Pro, etapa que abre a temporada.

 

Confesso ter pequenas pontadas de inveja sempre que vejo que o tempo não passa para o cara. Kelly se apresentou com viradas bem executadas, rabetadas agudas e um vasto repertório de manobras aéreas, numa linha mais afinada com os estreantes Alejo Muniz e Julian Wilson que com contemporâneos de circuito mundial. Aliás, que contemporâneos? Só o velho Taylor Knox tem os mesmos 39 anos que ele.

 

O curioso é notar o círculo virtuoso que retroalimenta o tal dia da marmota de Kelly. As vitórias fazem com que ele queira repetir a experiência do sucesso indefinidamente. Muito se falou sobre a aposentadoria dele este ano, mas agora pinta a possibilidade de o americano fechar um ciclo redondo 1991-2011 no circuito mundial, a despeito de seus anos sabáticos.

 

Ainda é cedo para procurar adversários, mas, no warm-up dos surfistas na primeira fase do Quiksilver Pro, vi um Joel Parkinson em forma, querendo jogo de verdade. Jordy Smith, depois de uma temporada brilhante, mudou de prancha e ganhou ainda mais velocidade. Taj Burrow segue soltinho na vala, com um surf encaixado nas direitas de Snappers.

 

Mick Fanning surfou muito bem e fez a nota mais alta com um tubo. Ainda assim, dos candidatos a interromper o sonho de Slater, ele me parece o menos tocado pela onda de modernidade que varreu o circuito mundial. Nada de grave: seu perfil determinado e espírito competitivo costumam fazer a diferença em corridas longas do WT.

 

Os cinco brasileiros pareceram em forma para competir nas novas regras, mas perderam na escolha das ondas. Ainda é cedo para qualquer julgamento, vale aguardar a segunda fase.

 

Numa primeira leitura dos resultados das 12 baterias da primeira fase, as estrelas consagradas do WT parecem estar sendo bem avaliadas pelos juízes. Em tempos de quebra de paradigma, com a chegada de uma nova geração repleta de manobras progressivas, os arcos de alguns atletas com várias temporadas de World Tour foram especialmente pontuados. Mas não há nada que a performance arrebatadora de um novato voador não possa mudar. Talvez seja esse o único feitiço capaz de quebrar o encanto do dia da marmota de Slater.

 

Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".