Leitura de Onda

O ano na lente do leitor

0

 

Para o leitor Renato Mansour, Kelly Slater teria perdido para si mesmo no Hawaii. Foto: © ASP / Cestari.

Todo fim de ano é a mesma coisa: retrospectivas, listas dos dez mais, memórias de quem se foi, quais as novas tendências…

 

Uma batelada de conteúdo é gerada para lembrar o ano. Eu poderia construir um texto sobre 2012: falar da vitória da estética de Joel Parkinson, do peso da derrota do Kelly Slater; lembrar-se de lástimas como o Teahupoo gigante, em dia de WCT, sem os tops na água, e o trágico vice de Medina em Portugal, do Brasil mais forte em 2013… Ou ainda falar de mais um ano consistente de Mineiro.

 

Como opinião de colunista é publicada o ano todo, desta vez decidi publicar a carta de Renato Mansour, um dos sete leitores que sempre trocam ideias comigo. A ideia é tentar mostrar um pouco do lado de lá, a opinião de quem recebeu e processou informações durante todo o ano e não tem espaço fixo para se comunicar. 

 

Escolhi o bom texto de Mansour não por concordar com tudo o que ele escreve, e sim para reverenciar outras opiniões. Temos vários pontos em comum, é certo, mas nada mais saudável, em qualquer debate de ideias, que o contraditório, a discordância educada.  

 

Vamos à carta:

 

“O surf morreu viva o surf”

 

Fala, Tulio! 

 

Acompanhei o WCT e o WQS este ano de maneira tão fervorosa e dedicada que cheguei a me sentir uma velha beata. Cansei. Fiquei verdadeiramente cansado com essas competições, e, consequentemente, com a ASP. Assim como muitos outros fissurados pelo surf. Para o meu espanto, muitos não fissurados também se sentiram traídos pelo surf competição. 

 

O surf definitivamente não é mais a mesma coisa. Não tem mais todo aquele lado romântico da aventura e do desbravamento. Até as surf trips hoje são planejadas com todo o conforto possível, atendendo a todo tipo de “bolso”. Campeonatos transmitidos on-line do outro lado do mundo. 

Quatro quilhas já não são mais um tabu. Pranchas leves como plumas, finas feito lâminas, velozes e flutuantes e altamente manobráveis mostram o rumo das novas tecnologias. Até o localismo está sendo organizado, setorizado, hierarquizado. Surfistas (alguns deles) estão ganhando dinheiro… com o surf! Isso é quase um milagre! E o surf, que era apenas surf, já tomou tantas vertentes e ramificações – surf de ondas grandes, surf de alta performance, surf acrobático, SUP, long, surf de pororoca, surf nos rios da Alemanha, surf de piscina… 

 

Dentro desse mundo imenso de mudanças, o Brasil se consolidou como player no surf mundial. Demorou, mas aconteceu. Podemos listar nomes e mais nomes e mais nomes, mas a verdade é que foi um esforço de todos, mérito de todos, dentro do seu tempo e de sua época.

 

Hoje, o resto do mundo já percebe o surfista Brasileiro como ameaça real e verdadeira e já se prepara para lidar com esse movimento. Uns se aproximam, aprendem a falar o português, se empolgam com o calor e a paixão que o Brasil emana. 

 

Aconteceram alguns momentos de interpretação complicada e que serviram mais ainda para solidificar o Brasil no cenário mundial: Slater x Adriano; CJ reclamando do hassle brasileiro; a polêmica final de Peniche. O mundo reclamou, choramingou, esperneou, mas no final não adiantou. A mudança é uma das certezas da vida. Alguém mais inteligente do que eu já deve ter dito isso de maneira mais fluente. Essa é uma das premissas do Budismo. 

 

No aniversário de um bróder meu, Kelly Slater perdeu para si mesmo e Joel Parkinson finalmente se provou campeão (merecidamente). Um dia histórico. A ASP nunca será a mesma. Kelly Slater não é o mesmo. Não devemos fazer pouco do monstro Slater, mas ele precisa atentar para o fato de que está entrando na fase de deixar de ser monstro e se tornando um dinossauro. 

 

Slater precisa reinventar o produto Slater. Se ele ao menos fosse menos arrogante, menos prepotente, menos “dono do WCT”, talvez aceitássemos melhor mais um ou dois anos de Slater. É mesmo difícil não ser arrogante depois de ganhar 11 títulos mundiais, vencer uma molecada que tava nascendo enquanto ele vencia o primeiro título, ser o embaixador mundial para um esporte que era limitado às orlas oceânicas. 

 

Agora, será que ele vai querer dar uma de Schumacher e insistir até ninguém mais aguentar ver a cara dele?

 

Em 2013, a missão é superar a perda do Kelly Slater (e o Slater superar a perda do Slater). Aceitar o novo sem esquecer o passado. Brasil vencer o WCT. Outras mudanças virão. Algumas podemos prever. Outras serão surpresa. 

 

O mundo do surf não é mais apenas uma representação de liberdade e paz e integração com a natureza. O surf é também um esporte de altíssima performance. Continuará sendo uma das atividades mais sedutoras que existem, isso não mudará. 

 

Mas não será a única e singular atratividade deste estilo de vida. O surf terá que conviver com a tecnologia, com o turismo desenfreado, com a noção de que o mundo pertence a todos e que não existem fronteiras nem limites. O surf morreu. Viva o surf!

 

Boas festas e um feliz ano novo para você e para os seus!

 

Tulio Brandão é jornalista, colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou nove anos no Globo como setorista de meio ambiente e outros três anos no Jornal do Brasil, onde cobriu surf e outros esportes de prancha. Atuou ainda como gerente de Sustentabilidade da Approach Comunicação. Na redação, ganhou dois prêmios Esso, um Grande Prêmio CNT e um Prêmio Abrelpe. 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".