Mar doce lar

Lembranças da mata

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Perfeição entocada na pororoca do Rio Araguari, Amapá, em 1997. Foto: Rick Werneck.
Certas datas, indicações precisas dos anos, meses e dias em que ocorreu algum fato, despertam lembranças em mim, algo que se apresenta em um dado momento na memória.

 

Dia 27 de abril de 1994 é o dia do nascimento do meu primeiro filho, Xande. Quando fez um ano eu estava nas Maldivas e, em 1997, quando completou três anos, também não pude participar do aniversário porque estava viajando à trabalho.

 

Aliás, um belo trabalho!  Naquele dia, eu surfei pela primeira vez a pororoca do Rio Araguari, junto com o cinegrafista Sylvestre Campe.

 

Em 98 a pororoca já figurava no Guiness Book – livro dos recordes, como a onda mais longa do mundo. Foto: Rick Werneck.
Dois dias antes, o catarinense Guga Arruda e o pernambucano Eraldo Gueiros haviam se tornado os primeiros surfistas a conquistarem a ?onda mais longa do mundo?. Éramos, portanto, Sylvestre e eu, os terceiros.

 

Além de nós, Michael Sonkin e Gustavo Gama compunham o time que partiu para esta empreitada, que acabou de vez com um mito que levou anos para ser construído: o mito da onda assassina.

 

Sim, porque até aquela data, a pororoca era simplesmente ?a onda assassina?. Qualquer habitante ribeirinho poderia atestar este fato, inclusive com relatos de conhecidos mortos pela força deste fenômeno. O povo tinha literalmente pânico daquela onda.

 

Um fato muito curioso que nos aconteceu naquela primeira viagem foi a cena do embarque. Imagine seis caras, mais o Corpo de Bombeiros, chegando em um vilarejo chamado Ferreira Gomes, à beira do rio Araguari, no Amapá, com pranchas de surfe.

O povoado inteiro, curioso, veio até o cais para saber o que estava acontecendo, quem eram esses ?ET?s?, o que eles carregavam e o que pretendiam?

 

Quando explicamos que iríamos navegar 14 horas até o encontro do rio com o mar, para tentar surfar a pororoca, a reação foi instantânea: disseram que morreríamos e que deveríamos desistir imediatamente. Explicamos que tínhamos experiência em ondas havaianas, enormes, mas ainda assim, não compreenderam e começaram a pedir freneticamente que desistíssemos da empreitada.

 

Diante da iminência de embarcarmos, algumas senhoras começaram a chorar até que alguém gritou no meio da pequena multidão que se formou: ?Mostrem as imagens que o cingrafista da Globo fez há quinze dias.  Quando virem, certamente vão desistir.?

Dito e feito, em poucos segundos havia uma TV e um vídeo-cassete ligados a um ?gato? de energia, que puxaram na hora, e uma fita sendo inserida com as tais imagens, ali no deck de embarque.

 

Como não tínhamos idéia de que tipo de onda iríamos encontrar, prestamos muita atenção. As primeiras cenas mostraram uma onda marrom batendo forte na margem e derrubando algumas árvores.


Olhamos e acho que pensamos que realmente não seria fácil a missão. No entanto, no minuto seguinte, o cinegrafista resolveu mostrar a margem oposta.  Enquanto girava sua câmera, apareceu ali, no meio do rio, como um sonho, uma onda p e r f e i t a!

 

Como o cinegrafista não tinha o olhar salgado, característico de quem pega onda, não se ateve a esse detalhe e continuou a girar sua câmera até o outro lado do rio. Paramos a fita, voltamos algumas vezes para conferir a onda e, diante dos olhares atônitos das senhoras, rapidamente embarcamos rumo ao nosso destino.

 

Mas, agora com a certeza de que iríamos encontrar uma onda que não era apenas uma espuma nem uma onda estacionária, como imaginávamos que poderia ser. Era simplesmente perfeita.

 

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Sequência de linhas sem fim no rio Araguari. Foto: Rick Werneck.
Nosso primeiro contato com a onda foi ao mesmo tempo mágico e frustrante. Seguindo orientação do Corpo de Bombeiros, nos posicionamos na margem à espera dela. A informação era de que passaria por ali.

 

Cortando o silêncio da floresta, um barulho como de um motor bem longe anunciava sua chegada. Olhei através da teleobjetiva montada no tripé e vi, com esses olhos que a terra há de comer, bem distante, uma onda perfeita quebrando no meio do rio.

 

Não consegui desviar o olhar, encantado com visão tão surreal. A onda não parava de quebrar.

 

Pororoca do Rio Araguari, Amapá, 2003. Foto: Rick Werneck.
Comecei a marcar o tempo e, quando deu cinco minutos, achei que era uma ilusão. Que, pela distância, não estava enxergando direito.

 

Passei um rádio para o Eraldo e perguntei: ?Você está vendo??. Diante da resposta afirmativa, perguntei: ?O que você está vendo??. ?Acho que não estou enxergando direito,? ele disse. ?Porque estou vendo uma onda perfeita quebrando há um tempão!?.

 

A onda acabou sumindo e quando alcançou a margem onde estávamos, era apenas uma ondulação insurfável.  Nos reunimos com o Corpo de Bombeiros e explicamos que queríamos ir até a boca do rio para explorar o lugar. Queríamos estar exatamente onde a parede da onda se forma.

 

À princípio ficaram relutantes mas, depois de um debate entre eles, nos chamaram para uma ?reunião estratégica?. Haviam concordado em nos levar até a onda desde que seguíssemos à risca o plano traçado por eles. E se puseram a explicar: ?Levaremos a lancha para a margem, esperaremos a onda passar, colocaremos a lancha no rio e seguiremos atrás dela,? disse o comandante.

 

Quando discordamos e apresentamos a contra proposta de entrarmos na lancha, irmos de encontro à onda e virarmos para acompanhá-la até o momento de pular no rio, rolou um impasse que só foi decidido com a palavra final do comandante: ?Ninguém da corporação está autorizado!?.

 

Subimos ao teto do barco para debater uma alternativa que nos possibilitasse chegar até a parede da onda. Para nós, era frustrante chegar tão perto e estar tão longe ao mesmo tempo. Já quase sem esperança, ouvimos o barulho de um motor de lancha se aproximando. Olhamos para o rio e avistamos, em uma pequena embarcação de alumínio, conhecida na região como voadeira, com um motor de apenas 15hp, o sujeito que iria viabilizar nossa expedição: Zeca.

 

Nós o chamamos, explicamos a situação e dissemos o que queríamos. O cara concordou e o resto é história. A onda foi conquistada e o que era motivo de medo passou a despertar curiosidade e a trazer desenvolvimento e dinheiro para algumas comunidades ribeirinhas.

 

No dia 27 de abril deste ano, 2006, mais uma vez não pude estar com meu filho no aniversário dele. Eu estava, nove anos depois, surfando de novo a pororoca do Araguari.
Já estive outras vezes lá, entre a primeira e esta última viagem, e já surfei a pororoca em outras ocasiões, mas o fato de estar surfando na mesma data nove anos depois me fez pensar no tempo e nas mudanças.

 

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Crowd na pororoca? Sinal dos tempos… Foto: Rick Werneck.

Obviamente a emoção do encontro com o desconhecido só acontece na primeira viagem. Nas outras, o que desperta a atenção são as mudanças que ocorrem na região.

Nas primeiras viagens o que eu via era um eterno avanço do rio para cima das margens, numa demonstração de força que parecia desigual. Cada vez que a pororoca passava, a margem mudava.

 

Pequenos rios, chamados igarapés, eram invadidos pela onda e rapidamente aumentavam de volume, enquanto ilhas no meio do rio ficavam menores a cada passada do fenômeno.

 

Santa Máfia durante apresentação Macapá, Amapá. Foto: Rick Werneck.

Nesta viagem, num sobrevôo de helicóptero, percebi que a lama das margens acabou formando uma nova ilha no meio do rio e que a vegetação já começa a crescer.

 

O rio ficou relativamente estreito nesta região e a onda, quando passa perto dessa ilha, abre uma parede para a esquerda, protegida do vento, e proporciona momentos de puro prazer.

 

Apesar do cheiro de óleo, que não combina com a mata, a chegada do jet-ski tornou o surfe na pororoca muito mais viável. Antigamente, tínhamos que pular da voadeira e torcer para que a onda não corresse para o outro lado. Uma onda perdida significava que só iríamos surfar de novo no dia seguinte.

 

Desta vez, caí quatro vezes da onda e, em todas as vezes, fui resgatado por um jet-ski e recolocado na parede para mais alguns longos minutos de delírio tropical na floresta.
As noites de sono na rede, coberto por um mosquiteiro, ao sabor do vento e da chuva foram substituídas por lençóis limpos numa das onze suítes erguidas sobre palafitas na fazenda do Dinaldo.

 

A pororoca agora está na moda, nas revistas, na TV e até no Guinness, embora já estivesse em 98. Tanta exposição atrai cada vez mais pessoas interessadas em surfá-la. Sim, o temível crowd também chegou à floresta.

 

Por enquanto, a extensão da parede da onda abriga todo mundo, mas com o crescimento da procura e o natural desenvolvimento da região, tenho certeza de que ainda vou ver muitas mudanças.


Depois que vi construírem um hotel no alto de Uluwatu e um viaduto em Padang Padang, onde eu passava com uma pequena moto trail numa estreita trilha de pedras, eu reconheço que o avanço do homem não tem limites.

 

Ainda assim, sinto vontade de voltar sempre. A Pororoca é a onda mais brasileira que existe e um tempo na floresta sempre me faz bem. No final desta última viagem, fui tocar com a Santa Máfia em Macapá, num lugar onde, alguns anos atrás, antes de ter minha banda, eu tinha visitado e imaginado que seria um ótimo lugar para um show: a Fortaleza São José, construída há duzentos anos para proteger a entrada do Rio Amazonas.

 

O lugar é lindo, o som estava alucinante e a galera fechou o Primeiro Festival da Pororoca cantando, entre outras, a música Pororoca, composta por mim durante uma viagem ao rio Araguari.

 

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