Mar doce lar

Ídolos não morrem

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Xandinho é um ídolo e está imortalizado na memória de quem teve a oportunidade de conhecê-lo. Foto: Rick Werneck.

Dia 25 de agosto de 2004, nove horas da noite, o telefone toca. Do outro lado da linha, o sotaque lusitano perguntando por mim não deixa dúvidas.

 

“Paulinho, onde é que tu estás, ó pá, em Lisboa!?!?!?”, eu brinco. “Não”, responde ele. “Estou bem pertinho, aqui em Recife fazendo um curso, até o início de setembro”.

 

Paulo Costa é meu irmão. Não no sentido biológico, mas no sentido adquirido. Meu irmão português, embora na verdade ele seja brasileiro. Explico: seus pais são portugueses, mas já rodaram as ex-colônias portuguesas como Moçambique, Angola e Brasil.

 

Rick Werneck, Xandinho, Kitty, Billy Portinari, Claudio Marques, Marcelo Madeira e Kiko Ebert no Peru, 1986. Foto: Arquivo pessoal Rick Werneck.
Paulinho nasceu quando a família morava em Recife, onde até hoje vivem seus tios, irmãos de seu pai. Foi lá que ele, ainda novo, começou a se aventurar no mar, até se tornar um dos melhores bodyboarders de Portugal.

 

Tenho um laço muito forte com sua família, forjado a momentos de muita dor e solidariedade. Seu Álvaro e Dona Ana são meus pais portugueses e Duda e Álvaro, meus irmãos também. Paulinho tem ainda uma irmã.

 

Ao telefone, falamos das saudades do Brasil e de Portugal, de viagens passadas e futuras e de nossas famílias. No final, um comentário dele me fez relembrar o momento que nos uniu para sempre.

 

Xandinho entuba profundo no Tahiti. Foto: Rick Werneck.
“Amanhã faz onze anos”, ele disse. “Como todos os anos, vou dar um mergulho no mar, para me energizar”.

 

É impressionante a força de um ídolo. Passados onze anos, ainda é capaz de energizar pessoas. Estou falando de um dos maiores guerreiros que eu conheci. Um guerreiro dos mares, mas acima de tudo, da vida. Um destemido. Um bravo sonhador. Um exemplo de gente. Uma pessoa que conquistava qualquer um, em poucos minutos, com sua atitude, dentro e fora d’água.

 

Eu estou falando do Xandinho, um dos maiores bodyboarders do planeta. Podem perguntar ao Tamega, ao Mike Stewart, ao Calunga, ao Pedro Muller, ao Burle ou a qualquer outro ídolo do surfe ou do bodyboarding que tenha tido a chance de conviver com ele. Qualquer um!

 

Primeira equipe brasileira no Mundial do Hawaii. Kung, Xandinho, Salgado, Guto e Claudio Marques. Foto: arquivo pessoal.
Eu, graças a Deus, tive essa chance e o Paulinho também. Para falar a verdade, convivemos com ele até os momentos finais de sua gloriosa vida. Estávamos com ele no fatídico acidente de carro em Portugal, quando ele se foi.

 

Paulinho logo conseguiu sair do carro e passou uma hora em agonia vendo os bombeiros portugueses tentando nos tirar das ferragens com macacos e serras pneumáticas. Xandinho não resistiu. A certa altura, deu um último suspiro, rodou os olhos pra trás e partiu.

 

De vez em quando ainda choro por ele. Não tanto quanto antes, o que me dá até um pouco de culpa, mas ainda choro. Não tenho vergonha de confessar que sinto a maior falta dele.  Quando vejo meus filhos, então…

 

Xandinho em Pipeline, Hawaii – capa da Bodyboarder, primeira revista de bodyboarding brasileira. Foto: Rick Werneck.
Meu filho mais velho se chama Xande, em sua homenagem. Sempre disse que ele seria o padrinho do meu primeiro filho, mas me atrasei nove meses. No mesmo dia em que Xandinho partiu, Laila pegou o resultado positivo do exame de gravidez do nosso primogênito.

 

Quando olho para ele e para meu outro filho Luke, consigo imaginar o “tio” Xandinho, como eles o chamam, zoando geral. Chamando os moleques de cabeludos e botafoguenses sofredores – seu único defeito era ser flamenguista. Quase consigo ouvir a sua sonora e inconfundível gargalhada ecoando pela casa.

 

Isso me lembra uma passagem muito engraçada. Certa vez, nós fomos assistir ao show do Tom Cavalcanti no teatro da Lagoa. Xandinho ria tanto do comediante, e tão alto, que este começou a rir também e teve que interromper o espetáculo. Depois o cara disse que queria contratar a pessoa “dona” da gargalhada para acompanhar ele nos shows, para incentivar a platéia.

 

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Xandinho explica para Mike Stewart a teoria por trás do desempenho das nadadeiras Redley, que ele desenvolveu com Zé Caedro. Foto: Rick Werneck.
Mas falava do Xandinho para exaltar a força de um ídolo, pessoa a quem se tributa respeito ou afeto excessivo. Às vezes, ambos, respeito e afeto. Gente que muitos anos após partir para o plano espiritual, ainda serve de exemplo e inspiração para muitos que ainda estão por aqui. Gente como Xandinho, Senna e mais alguns poucos.

 

O ídolo transforma o tênis, a ginástica olímpica, a vela, o hipismo e até mesmo a tradicional maratona em papo de esquina no país do futebol. Através da conquista de uma única pessoa, uma nação inteira adquire conhecimento, ainda que passageiro, de esportes sem tradição no país, fazendo com que esses esportes possam crescer e atrair dinheiro. Embora uma administração corrupta, com interesses escusos, possa destruir todo o trabalho do ídolo.

 

Cacimba do Padre, 1987. Foto: Rick Werneck.
Xandinho foi um grande ídolo para mim. Não como esportista, pois não pratico bodyboarding, mas como brasileiro e, acima de tudo, como ser humano. Cansei de vê-lo ajudando pessoas de quem ele não gostava simplesmente porque as pessoas estavam precisando. Era incapaz de deixar alguém na roubada.

 

Quando ia anualmente competir na Austrália, tinha passe livre para ficar hospedado na minha casa em Sydney quando quisesse, mas ele não sossegava enquanto todos os brasileiros não estivessem alojados em algum lugar. Às vezes tinha gente espalhada, entre pranchas e roupas de borracha, por todos os cômodos da minha casa.

 

Xandinho escala o Pico em Noronha, nas páginas da revista australiana Riptide. Foto: Rick Werneck.
Na era pré-Tamega, Xandinho, com seu carisma e seus resultados, conseguiu popularizar o esporte que tanto amava, atraindo a televisão e fortalecendo o mercado de pranchas e pés-de-pato. Coincidentemente, depois que ele se foi, a popularidade do esporte também caiu.


Tive a oportunidade de viajar muito com ele e presenciei gente de lugares tão distintos quanto Guadalupe, Ilhas Reunião, Tahiti, Ilhas Canárias, Hawaii, e indonésia ficarem extasiados quando descobriram que aquele sujeito magrinho e engraçado era na verdade o destemido bodyboarder que desafiava com sucesso as bancadas mais casca-grossas do planeta.

 

Ele era ídolo no planeta todo. Certa vez, eu estava no trabalho desenhando koalas e cangurus para um marca de camisetas para turistas, na Austrália. Ao fundo, o locutor da rádio “Triple M” anunciava que daria um bodyboard para quem acertasse a resposta à sua pergunta.

 

Xandinho na revista australiana Riptide. Foto: Rick Werneck.
“Quem foi o melhor atleta, não havaiano, nas dez primeiras edições do Campeonato Mundial de Bodyboarding, em Pipeline?”, mandou no microfone.

 

Em poucos segundos o telefone tocou e um moleque respondeu com seu forte sotaque australiano: “Alex de Pontes”, como era conhecido em terras estrangeiras. Levou a prancha.

 

Falei do Xandinho para ressaltar a importância de cultuarmos nossos próprios ídolos. Kelly Slater e Andy Irons surfam muito, mas meus ídolos se chamam Fábio Gouveia, Victor Ribas, Binho Nunes e Neco Padaratz. Precisamos assumir a nossa própria identidade para podermos exportá-la com orgulho.

 

Os bodyboarders portugueses (esq para dir) Tozé, Mariza, Joana, Xandinho, Paulinho, Ávila e Jojó, Portugal 1993. Foto: Rick Werneck.
O mercado brasileiro foi dominado por marcas gringas. Aqui se copia tudo e ainda acham legal. Se na feira “deles” a tendência é floral, aqui vai ser igual. Mesmo as marcas que se intitulam brasileiras e fazem campanhas nacionalistas, têm nome em inglês e escrevem surfe sem “e”. Surfe no Brasil se escreve com “e”, vocês sabiam?  Desculpe-me a sinceridade, mas “surf” é coisa de gringo, analfabeto ou gente metida a besta.

 

Sou do tempo da Cyclone, do Tico e, principalmente, da Cristal Graffiti, que nasceram e cresceram com a cara do Brasil, inovando e acima de tudo apoiando surfistas brasileiros, com campanhas e slogans brasileiros. Juntávamos os míseros cruzeiros, cruzeiros novos e cruzados para podermos expor nossa arte lá fora, através dos nossos surfistas.

 

Para Kyle Maligro, Keith Sazaki, Jay Reale e Mike Stewart era apenas mais uma expression session. Para Xandinho, era a última bateria da vida. Foto: Rick Werneck.
Não dá para aturar calado, vendo caras como Victor Ribas e Armando Daltro passando sufoco, sem patrocínio no WCT, enquanto milhares de dólares saem do país a título de royalties para pagar a carreira de surfistas estrangeiros que já têm toda a moleza do mundo.

 

Basta! Vamos apoiar nossos ídolos, para que eles possam fazer o mundo olhar nosso país com a admiração e respeito que merecemos. Vamos bater no peito e gritar: “Somos brasileiros, porra!”. Vamos torcer por eles como torcemos pela seleção canarinho de futebol.

 

Xandinho se foi, no último dia da nossa viagem por França e Portugal, para lançar o pé-de-pato da Redley, desenvolvido por ele e Zé Caedro. Isso já tem onze anos, mas, até hoje, em qualquer praia do planeta, é a nadadeira que mais se vê nos pés dos bodyboarders. Isso sim é um belo exemplo e motivo de orgulho.

 

Fique em paz, Galego. Que a tua luz ilumine o caminho de todo brasileiro.